segunda-feira, janeiro 30, 2006

Estação nocturna

Dou por mim a discutir o ser dos outros, as enredadas e nebulosas vias de cada qual ser cristão, coisa secreta e absoluta e exclusivamente singular e íntima. Dou por mim a dialogar sem ser no silêncio com que se escutam os anjos, na diáfana abertura do coração. Dou por mim a executar-me num cristianismo periférico, sociabilizado na contratualidade, mundano.
Dou por mim esquecendo que a renovação de todas as coisas, do primeiro átomo à última alma, é algo de totalmente gratuito - o simples acto de dar, de se dar sem mais, é a espada que fende o mundo ao meio, fazendo brotar o sangue e a vida onde não habitam senão sombras esvaídas e indefinições. Nada é o que parece, e no amor, tudo se torna o que parece. Não é magia, é revelação - tudo está lá, aqui, ali. Somos apenas nós que a maioria das vezes não estamos lá, tantas e tantas vezes não estamos onde estamos, perdidos nos meandros estratégicos do medo e do desejo, cheios de cordas e sirgas puxando-nos aquém e além, confusos e definidos como toda e qualquer história fechada.

Oh Deus, tantas e tantas vezes esquecemos a boa nova, trazemo-la na boca com o coração ávido de vãs guardas e vaidades, defesas do ser encurralado que somos ao não desabrocharmos, bloqueados e perros como borboletas congeladas. Fazemos pois política, gestão de grupos, psicologia - mas nunca amor, nada gratuito, negociantes de Veneza e de todo o mundo, organizadores de horizontes e viagens e acções diversas - presos na estratégia, fechados à providência, sufocados nos dias que passam e mantendo o sorriso iludido de quem é senhor da viagem e de si e da vida.

Mas há sempre um grito ou um rumor para acordar, porque Tu provês tudo, e nenhum irmão descansa até ao fim.

E lembro uma irmã dizendo: Mesmo antes de pecar, já sei que sou perdoada. O problema não é esse. É sim - o que fazer com essa liberdade.

A graça é gratuita, e se não o esqueceres, só poderás dizer que é para todos - sem excepção, sem juízo nem lei, para todos.

A única coisa que conta.

Conhecemos isto na simplicidade do quotidiano afectivo, coisas que pouco no parecer estão de falar, e que devido a tal se calam ou exprimem exagerada e deslocadamente. Quando após uma sacanagem ou desatino a um amigo, amado, familiar, este apaga até ao zero a ferida e o motivo e nos acolhe na lágrima e na alegria - e sabemos de antemão que nos amará e acolherá mesmo que desabemos no crime. Faz isso com que o nosso coração aproveite tal para sacarmos sacanagens e abusos? Ou abre-se ele à vontade de nunca mais magoar ou torturar os olhos que nos acolhem? O amor depositado no coração abre este ao amor, limpa-o, purifica-o de raivas e medos e ansiosas sofreguidões. Só no amor descansamos, todo o resto é tormenta - e todo o coração, sabe disso.

E como é que querem que uma pessoa durma depois de escutar uma coisa destas , depois de escutar o seu ressoar noite dentro no coração e na mente. Bem que podem vir todos os calmantes e anestésicos do mundo, pois mesmo que adormeçamos, ficámos mais que acordados - para a eternidade.

Eram cinco da manhã e acabara de ter ido à Estação Nocturna, acabara de imprimir e ler o texto há sete horas atrás, mas o silêncio do seu ribombante eco continuava a crescer em mim, tinha os olhos como fachos ardentes e olhava para a rua, da varanda onde fumava um cigarro olhava para a rua, como se tivesse acabado de chegar de marte, como se todas as nossas regras e técnicas estivessem absolutamente desadequadas, fumava o cigarro e não pensava em nada, a rezar que nem um maremoto com palavras ininteligíveis, cegos anseios de alegria e destemor, mais vivo que todos os animais do mundo, sereno como a felicidade.

O reino dos céus está entre vós, o reino dos céus está dentro de vós - somos umas bestas. Queremos dar forma ao que é bruta liberdade. Temos medo da boa nova, e amenizamo-la. Voltamos à sociedade e à natureza sem nada nas mãos, com palavras esvaziadas e acobardadas. Mas claro, vamos à missa ao domingo, em família, integrados. Somos todos cidadãos respeitáveis, nenhuns criminosos. Tal como os fariseus. Pensamos ser um equívoco a Sua condenação, e os fariseus pensavam-Na acertada - mas o sentido do juízo é o mesmo: a lei é justa, e é a suprema aferição. Não nos passa pela cabeça que não houve equívoco algum, e que o amor é condenado sob qualquer justiça porque transborda esta e sopra onde quer e para quem quer, à borla para o justo e para o pecador, para quem vai à missa e paga os seus impostos assim como para a rameira que vai à tasca ou o prostituto que se esvazia na viela.

Ecce homo.
Mas porque O esquecemos?

...

Um abraço irmão, Samuel, e mantém essa acha na fogueira. Não tenhamos receio de gaguejar o incompreensível, e de por ele viver.

E que a graça te acompanhe, invada, nos acompanhe, invada, a todos - pecadores.

Amen.



P.S.: E do fundo da água ecoaram rumores .

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Ferida

A melhor definição de pecado que conheço, li-a do Pedro Paixão numa entrevista: Pecado, é distrair-se do fundamental.

E acrescente-se que o estado decaído, é não saber o que é o fundamental - e pensar sabê-lo.

terça-feira, janeiro 17, 2006

HP

Diz o professor hebreu: se rezares correctamente, saberás imediatamente reconhecer a sua invasão em ti, e que te arrebata. O espírito abre-te às suas possibilidades.

Antes de todos os tempos Eu te amei, e amei toda a criação, olhei para ela e vi que era bela.

O mundo não é amado porque tenha sentido, mas ganha sentido ao ser amado. Sendo o significado o do amor, e não do mundo, trata-se duma dinâmica de transformação. O mundo sem sentido em que paira um significado, como que tende a dar expressão a esse significado que ele, mundo, não é. O sentido é dado, digamos assim, no olhar.
Não se trata aqui da encarnação humana do verbo de Deus, mas da sua presença executante, muito antes sequer do avô hebreu que professa, e de todas as índias e gálias e américas, desde fora do primeiro átomo da criação ao sentido da inteira história desta. O significado do mundo está dado desde sempre, e para sempre, fora portanto da temporalidade própria do seu acontecer, do mundo, e assim o move.

O acto de criação é uma dinâmica do amor divino, que transposto para a acção humana corresponde ao famigerado Amar é querer que o outro seja. Não que eu seja através dele, mas que sem apropriação despersonalizante e enclausurante, eu seja o que sou, e com-sejamos numa unidade que não anula a inteireza de cada um de nós, e que produz uma terceira inteireza que se constitui na própria união. É um analógico do famoso três em um que tanto abespinha alguns

Olhar o outro no significado da sua criação, do outro, do que mais fundo o sustém e lhe dá sentido – isso, não o podemos. Podemos no entanto não ser obstáculo a esse olhar, não determos o outro na opacidade que reside na impossibilidade de o vermos verdadeiramente. Porque tudo o que vemos e vivemos, tudo aquilo que verdadeiramente nos toca e contactamos – somos nós próprios. As características que nos atraem, as afecções que nos movem, das actividades que nos agarram às pessoas que nos apaixonam – não passam de remissões para o que nos caracteriza, a nós, o teu cabelo a esvoaçar ao vento mostra tão só o meu anseio de liberdade, mas não o teu revelado rosto.

Enquanto eu estiver a ver, vejo-me a mim-próprio. Aqui se vê o sentido do também famigerado O Amor é cego – atira-se para fora de si, e avança.

Isto não significa que as afecções, os sentimentos, os pensamentos, o que é próprio e acontece – sejam anulados ou desvalorizados. Pelo contrário, são até valorizados, ganhando sentido e constituindo-se doação total, sem freios nem retenções. E sim que apontem para algo – o outro, absolutamente.

E não significa que as afinidades electivas, os companheirismos e as amizades e os amores, sejam superados. Mas que se intensificam na vontade que o outro se seja – a si, cada vez mais, revelado e renovado, revelando-nos e renovando-nos.

Até ao inimigo, como se sabe – o que também não anula a inimizade. Também esta é reveladora.

Neste mundo e na razão, duas plenitudes impedem-se uma à outra. Mas o cristianismo pretende dissolver sem mais, ferozmente, a impossibilidade – é esse o sentido do Serão a mesma carne, analogia da unidade trinitária, divino soco na mesa da realidade. O amor esponsal é uma das imagens vivas mais intensas da unidade amorosa. A mesma carne, a mesma substância, o mesmo ser – é de loucos.

O amor é algo de absolutamente incompreensível, e curiosa e simultaneamente, absolutamente reconhecível – tal como a vida, a que preside.

É o rosto do outro visto e vivido na pausa de nós-próprios, paradoxalmente retribuído, o que faz com que cada um é pelo amor do outro, e por este se move e vive e é – e assim nenhum se anula.

Há uma esponsalidade desmedida no cristianismo. A Trindade é evidentemente fecunda – é precisamente essa a ideia de Criação. A vida. Não necessária, mas querida e desejada na fecundidade transbordante.

O cristianismo pretende que se execute a imagem da Trindade com todo e qualquer um, com o primeiro e com o último e todos os restantes. É aliás o seu único mandamento. E raios não me venham dizer que é razoável – o que por outro lado não configura nenhuma anti-racionalidade.

Deveríamos mesmo ser capazes de amar uma pedra – como diz o irmão António, que se assusta se tudo arde.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

A brasa e a sardinha

Para o Goldmundo , sim , e para a Aquilária .


Eis a libação, no silêncio da ribeira negra, pela luz ardida, na convulsão de tudo o que é vivo, visível e invisível, e estremece de beleza e susto.

Porque até Ele, quis estremecer.


Nota aos leitores: aqui no burgo, a malta não sabe pôr links sob as palavras dos posts. Mas é só seguirem o rumorejar.

Nota2 aos leitores: a insular Aquilária (obrigado!) tentou ensinar a este netroglodita a tarefa acima descrita. Após algumas tentativas e desastres, ficou tal qual está. Tentar-se-á porventura novamente, embora nada se tenha contra rumorejares e derivas.

Nota 3 aos leitores: E pronto.

sexta-feira, janeiro 06, 2006

Tratado acerca da fé, do senhor Zé Beirão, elaborado em comentários do post anterior, e com pequeno final por instado no seu próprio blogue

“Mas o que me tem marcado mais na vida são as coisas simples que ela tem. Assim são "as pessoas da minha vida", assim são os acontecimentos. E tem sido nessas coisas e nesses acontecimentos que tenho visto a presença de Deus (através daqueles e daquelas que Ele tem posto no meu caminho). Para mim, também isso é Fé. Ou melhor, para mim a Fé é isso. Mas haverá outra maneira de eu sentir o Amor de Deus?

Se ser realista e reconhecer-se aquilo que se é, é ser choramingas e queixinhas, então eu sou-o ao máximo! Não me hei-de queixar de mim mesmo? De Deus não me posso queixar; dos outros também não vale a pena. Não posso mudar Deus e também não posso mudar os outros. Hipoteticamente, só a mim é que posso mudar. Por isso me queixo.

(…) eu procuro viver a fé na simplicidade do dia a dia. Sou muito terra a terra. É verdade que a dádiva de três pares de meias me faz progredir na fé. É verdade que o lume aceso me faz também "aquecer" a fé. É verdade que eu me maravilho num simples "obrigado", num sorriso, num olhar cheio de doçura, num "bom dia" dado com optimismo, num afecto que aparece quando alguém necessita (às vezes também num ralhete)...Não consigo entender grandes tratados de teologia, apertados códigos canónicos, encíclicas e documentos papais cheios de citações, discursos de catequese muito nas nuvens, mentideros da diplomacia vaticana, grandes contas bancárias do IOR, homilias cheias de sabedoria sobre assuntos que ninguém domina...Fico-me mais pelo básico (…), pelo terra a terra.Há dias escrevia um amigo meu: "Muda um gesto, mudará tudo o resto". Creio que a acção de Jesus Cristo foi isto. Também deve ser esta a nossa prática de fé.

(…) não me importava nada de acrescentar alguma coisa sobre a oração. Mas... porque não ficar para outra vez? Pode ser?”

Zé Beirão

terça-feira, janeiro 03, 2006

Credo

Não somos nós que somos Deus, nem sequer parcelas ou faíscas. Nada fora de Deus é Deus, não há nada de outrém em Deus: a Sua indivisibilidade é total. Mas tudo é em Deus, e nós também.

Ele tocava-nos, na impossibilidade de o tocarmos nós a Ele. Até ao dia em que a sua palavra se concentrou num rosto e presença humana, e nos tocou a partir de nós próprios e por dentro.

Deus é anterior a tudo o que seja. Puro princípio e simultaneamente pleno, nada decorre necessariamente Dele - nem o mundo, nem o ser, nem nós. É absolutamente indeduzível. Pode-se dizer que algo deve presidir ao puro e bruto facto de haver coisas, aqui, nós e a janela e a noite lá fora e o cinzeiro e a caneta e o outro a respirar ao nosso lado e por aí fora no tempo e no espaço e no além possivelmente. Mas determinar na inteligibilidade de conteúdos isso que se pressente no cerne da vida a partir dela própria - não o podemos.

Se está à mão, não é Deus; se não está à mão, não me é nada.

Deus é mediador de si próprio em Cristo. É aí o seu acesso. A ininteligível Trindade, e a afirmação incompreensível da consubstancialidade, são o garante do acesso. O cristianismo é um excesso total perante a existência, que pretende desbloquear esta das suas aporias. Deus aqui não é uma conclusão mas um ponto de partida; mais do que tentar entender a Trindade e a Revelação, trata-se de nos tentarmos entender e viver a nós próprios a partir delas. E a conclusão, por ora e como se diz - só a Deus pertence.