segunda-feira, junho 13, 2011

por vezes

vejo um fantasma à janela, contemplando melancolicamente o mundo, esse lugar de vida e movimento a que ele já não pertence.


mas algo o agarra, não sabe bem o quê, e por isso abeira-se da janela, passeia pelos corredores, espreita os vivos a dormir e a sonhar; talvez lhe dêem uma impressão de ele também respirar, e esperar o amanhã com uma esperança de inesperado.


por vezes um anjo visita-o, talvez sempre até, como de certa maneira fazem os anjos. mas ele não vê o anjo, pois está sempre de costas para este, ou de olhos escondidos na melancolia. em certos momentos, traz até os olhos cegos por uma raiva sem lágrimas, uma raiva de que não sabe o exacto sentido, se a raiva de estar fora do mundo dos vivos, se a de esse fora ainda tanto ter que ver com o dentro. são assim as suas correntes, a sua prisão sem nome. talvez por isso não veja o anjo, não o queira ver, mais propriamente dito. ainda há tanto por fazer que não consegue fazer, é o que grita o seu silêncio, a sua brancura e leveza.


em certos momentos o anjo poisa mesmo junto ao fantasma, como um sussurro ou um beijo sem toque. o anjo chora, com a lentidão das pedras, mais pacientes do que a morte.


oh esse infinito vazio que antecede a criação do mundo, se tu o soubesses, fantasma, se ele te soubesse, pensa o anjo. não há palavras que descrevam o pensamento do anjo, as infindas imagens e palavras do que os seus olhos contemplaram desde o primeiro movimento de Deus, desde o primeiro sopro de vida, a primeira palpitação. também o anjo conhece toda a tristeza do mundo, e muito mais, pois conhece a tristeza de Deus, o abismo em que este se perde na sua solidão única. Deus precisa de nós, sussurra o anjo, não sabe se para si ou para o fantasma. sem nós, Deus morre de amores como a pobre Julieta, diz pirosamente o anjo, e o fantasma sorriu


(para a Gotika)