terça-feira, janeiro 17, 2006

HP

Diz o professor hebreu: se rezares correctamente, saberás imediatamente reconhecer a sua invasão em ti, e que te arrebata. O espírito abre-te às suas possibilidades.

Antes de todos os tempos Eu te amei, e amei toda a criação, olhei para ela e vi que era bela.

O mundo não é amado porque tenha sentido, mas ganha sentido ao ser amado. Sendo o significado o do amor, e não do mundo, trata-se duma dinâmica de transformação. O mundo sem sentido em que paira um significado, como que tende a dar expressão a esse significado que ele, mundo, não é. O sentido é dado, digamos assim, no olhar.
Não se trata aqui da encarnação humana do verbo de Deus, mas da sua presença executante, muito antes sequer do avô hebreu que professa, e de todas as índias e gálias e américas, desde fora do primeiro átomo da criação ao sentido da inteira história desta. O significado do mundo está dado desde sempre, e para sempre, fora portanto da temporalidade própria do seu acontecer, do mundo, e assim o move.

O acto de criação é uma dinâmica do amor divino, que transposto para a acção humana corresponde ao famigerado Amar é querer que o outro seja. Não que eu seja através dele, mas que sem apropriação despersonalizante e enclausurante, eu seja o que sou, e com-sejamos numa unidade que não anula a inteireza de cada um de nós, e que produz uma terceira inteireza que se constitui na própria união. É um analógico do famoso três em um que tanto abespinha alguns

Olhar o outro no significado da sua criação, do outro, do que mais fundo o sustém e lhe dá sentido – isso, não o podemos. Podemos no entanto não ser obstáculo a esse olhar, não determos o outro na opacidade que reside na impossibilidade de o vermos verdadeiramente. Porque tudo o que vemos e vivemos, tudo aquilo que verdadeiramente nos toca e contactamos – somos nós próprios. As características que nos atraem, as afecções que nos movem, das actividades que nos agarram às pessoas que nos apaixonam – não passam de remissões para o que nos caracteriza, a nós, o teu cabelo a esvoaçar ao vento mostra tão só o meu anseio de liberdade, mas não o teu revelado rosto.

Enquanto eu estiver a ver, vejo-me a mim-próprio. Aqui se vê o sentido do também famigerado O Amor é cego – atira-se para fora de si, e avança.

Isto não significa que as afecções, os sentimentos, os pensamentos, o que é próprio e acontece – sejam anulados ou desvalorizados. Pelo contrário, são até valorizados, ganhando sentido e constituindo-se doação total, sem freios nem retenções. E sim que apontem para algo – o outro, absolutamente.

E não significa que as afinidades electivas, os companheirismos e as amizades e os amores, sejam superados. Mas que se intensificam na vontade que o outro se seja – a si, cada vez mais, revelado e renovado, revelando-nos e renovando-nos.

Até ao inimigo, como se sabe – o que também não anula a inimizade. Também esta é reveladora.

Neste mundo e na razão, duas plenitudes impedem-se uma à outra. Mas o cristianismo pretende dissolver sem mais, ferozmente, a impossibilidade – é esse o sentido do Serão a mesma carne, analogia da unidade trinitária, divino soco na mesa da realidade. O amor esponsal é uma das imagens vivas mais intensas da unidade amorosa. A mesma carne, a mesma substância, o mesmo ser – é de loucos.

O amor é algo de absolutamente incompreensível, e curiosa e simultaneamente, absolutamente reconhecível – tal como a vida, a que preside.

É o rosto do outro visto e vivido na pausa de nós-próprios, paradoxalmente retribuído, o que faz com que cada um é pelo amor do outro, e por este se move e vive e é – e assim nenhum se anula.

Há uma esponsalidade desmedida no cristianismo. A Trindade é evidentemente fecunda – é precisamente essa a ideia de Criação. A vida. Não necessária, mas querida e desejada na fecundidade transbordante.

O cristianismo pretende que se execute a imagem da Trindade com todo e qualquer um, com o primeiro e com o último e todos os restantes. É aliás o seu único mandamento. E raios não me venham dizer que é razoável – o que por outro lado não configura nenhuma anti-racionalidade.

Deveríamos mesmo ser capazes de amar uma pedra – como diz o irmão António, que se assusta se tudo arde.

10 Comments:

Blogger caminante said...

Querido amigo: cierto. El amor da sentido a las cosas, a la vida. Quien no ama, vaga sin rumbo, aunque parezca que lo tiene todo y que sabe a dónde va.
Si me permites, te recomiendo dos libros: "El hombre en busca de sentido" y "El mundo gira enamorado". El autor es Viktor Frankl. Consiguió -por amor- sobrevivir en el Campo de Exterminio.
Te felicito por todo lo que dices y por cómo lo dices.
Un fortísimo abrazo.

10:31 da tarde  
Blogger Vilma said...

Sem o Amor a vida não teria qualquer sentido ou rumo! E é pra lá que caminhamos, para os braços abertos da essência do Amor. É Ele que nos atrai continuamente e não desiste de nós porque Deus é o Amor!

3:09 da tarde  
Blogger aquilária said...

meu caro vitor:
calou fundo este texto, em mim. faço aqui uma pausa, em com-sentimento. pena que exista uma distância tão enorme entre o que eu sou, e o que eu sinto. porque, meu amigo, eu sou o meu olhar. e o meu olhar continua a ser o de uma criança, perdida na noite, assustada, que canta por vezes, para esquecer o medo.

renovo o abraço.
(caminante, é bem encontrar-te por aqui!)

3:15 da tarde  
Blogger caminante said...

Dejo, caro Víctor, con permiso un breve comentario a lo que dijo Vilma. Gracias.

¿Porqué temer a la muerte si es la puerta que nos abre la Casa donde, desde siempre nuestro Padre nos espera con los brazos abiertos,temblando de amor? La muerte rompe la coraza y revela lo que realmente somos: odio o Amor. Y ya para siempre.

10:05 da tarde  
Blogger caminante said...

Aquilária:cultiva esa alma de niña, sigue sorprendiéndote por las cosas en apariencia sin importancia, pero importantísimas: el vuelo de una mariposa, el rumor del agua entre hierbas, el paseo en aparente soledad por las calles de la ciudad… Mientras tenemos alma de niño, cabemos. Lo malo es cuando crecemos y el alma se encallece, envejece. ¡¡¡No!!!.

No sé si están bien o mal traídas las palabras que Unamuno quiso poner en su tumba. Más o menos decían así:

“Acógeme, Padre, en tus brazos,
dulce hogar.
Ensancha las puertas,
Las hiciste para los niños,
Y he crecido a mi pesar”

Y se irán todos los miedos. Y tu cantar será el cantar de quien ama, no de quien teme. El temor del Amor es distinto al temor del vacío.

10:32 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Querido Caminante.

Aqui no burgo não é preciso permissão para escrever o que for.

E quanto aos teus comentários, quanto a mim venham eles, que só pela amostra... já me tocam os sinos do coração e do entendimento!

Esse Viktor Frankl, já mo tinham referido, mas ainda não o li.

Abraço forte!

1:25 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Cara Vilma.

Certíssimo, certíssimo, certíssimo!

Em cor de rosa, a preto e branco, e em todas as cores possíveis! ;)

Abraço terno.

1:27 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Alô, Aquilária!

Nem sei o que dizer... Quem me calou fundo foi o teu comentário.

Bem... Essas divisões interiores, pois... São tarefa para várias vidas, digamos assim... E no que me respeita, se fosse só entre o que sou e o que sinto... Eu até tenho divisões entre o que sinto e o que sinto... :)

Nunca percas esse olhar que luz no medo e na noite; quase todo o resto é bazófia. Ainda bem, tanto ainda bem, que assim cantas.

Um grande grande abraço, em água e sussurros.

1:43 da tarde  
Blogger Ver para crer said...

O amor é a origem e razão de tudo.
A tudo dá vida e sentido.
Abraço amigo.

8:44 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Ver para crer.

Certíssimo!

E também a sua finalidade, e também um excesso injustificável, infundamentável, pois que o fundamento não requer... fundamentação.

Abraços fundamentados no fundamento ;)

12:52 da tarde  

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