segunda-feira, junho 29, 2009

raíz, a mesma

ternura, confiança e ternura; e ser contigo, também

segunda-feira, junho 22, 2009

raíz

vaidade, bazófia e vaidade; e a raiva, também

segunda-feira, junho 15, 2009

Ab ovo, ad mala, etc

para o Nuno Ferro

Pensamos que no início há esta crença num deus da vida, enfim, no início é uma maneira de dizer, pois tropeçamos logo na noção de início que nada anteceda, um puro início, e já não sabemos muito bem onde nos situamos quando dizemos início seja do que fôr. É aliás algo que acontece com muitas das nossas palavras, senão com todas. No início de quê, estávamos dizendo? No início da fé, parece, uma difusa crença numa presença de um deus único, de algo com quem se fala ou se acompanha em silêncio no nosso próprio viver. Algo muito parecido com a vida ter uma voz, uma presença nela de algo maior que ela e que a unifique, que a detenha sem lhe aniquilar o movimento. Porque a vida, como sabemos, é pura aniquilação de si. Voltamos aqui um pouco à confusão inicial: uma aniquilação inicia-se a partir de si própria? É no mínimo estranho, suspeitamos. No início da fé, há portanto esta suspeita. Esta merda tem algum sentido, ou estamos para aqui apenas pendurados, é como se começa a dizer a coisa, algo assim, sem muito pensamento, claro, isso vem depois. No início o pensamento acabou de ser abalroado por si próprio, pois embateu na vida. Lembramo-nos que no início está esse abalo de si, o ter nascido, o ter vindo à vida. E que andamos aqui mais ou menos conscientes desse incessante escoamento que nós próprios somos, que somos de certa maneira puro esquecimento em acto, em andamento. Pois tal como a palavra “início” detém em si a incompreensível noção dum puro e total início, também a palavra “fim” contém o estertor da sua absolutização. Tudo o que tem início tem um fim, diz o povo, e muito bem o diz. Não trocamos a apocalíptica consciência do tempo por nenhuma utopia de plenitude e realização satisfeita de si, venha ela com o rosto que vier. É a suspeita inicial a fazer-se lembrar. A mim não me enganam, esses cabrões, diz também o povo, lá mais para o fim da noite, e com a mesma razão o diz. Mas como dissemos no início, é uma razão inicial, e no momento sofístico, passa sempre por desrazão. É que o sofista não quer reter o abalo, e pensa que o dizer se sustenta a si próprio, se inicia em si próprio. Como, não o saberá dizer, é aliás nessa impossibilidade que se apoia toda a sofística, numa espécie de início sem princípio nem fim, e por isso não se cala. Silêncio que vamos cantar o fado, diz o povo na sua desrazão socrática. Também porque o sofista hodierno, soube falsificar o moscardo ateniense a ponto de fazer dele o iniciador - lá está! - da razão discursando em contínua e bazofienta auto-sustentação. Trata-se aqui de uma ironia histórica e política que confirma e aprofunda a própria profecia socrática: que nada de verdadeiro e autêntico se constitui na ágora, e que a verdade da vida confronta-se na intimidade de banhos, banquetes em tascas ou casas privadas, discussões ocasionais na rua, enfim, coisas do povo a bem dizer, que só vai para a ágora quando o tribunal o julga ou a prisão o condena. A regra do diálogo é nunca monologar, toda a gente sabe isso, e ela é válida na própria reflexão individual. Assim como é válida em próprio tribunal público, onde só lhe resta, ao pobre moscardo, ironizar para se expôr como vida e recusar ser objecto judicável. Será na cela da condenação e entre amigos, que a reflexão sobre a justiça e a vida ganhará lugar e sentido. Digamos portanto também que no início da fé cristã há essa consonância entre o humano que se busca e interroga, e o próprio Deus que incarna. E que curiosa e significativamente, essa convergência se dá na condenação mútua que os amaldiçoa no tribunal dos homens. No início da fé cristã, dizia eu. Ora pois, diz o povo, e o que vem antes: a fé ou o ser cristã? Voilà, ficamos confundidos, é sempre assim, não dá hipótese. No início está Deus ou o humano? Bem, no início da fé só pode estar o encontro, com menos ou mais confusão. O que é que Deus diz no chamamento em que o dizemos. Poderá até dizer que não existe, e voltamos sempre à questão inicial; poderá também dizer que existe em modos impensáveis por nós; e poderá acrescentar que no entanto se esconde nos nosso próprios modos, e assim se nos dá: como algo que se afasta, e que esse afastamento é precisamente a dinâmica de surgimento das coisas e de nós. Tirar do nada é voltar a dar ao nada, é estar para lá do haver e do nada, sustentando a impossível dinâmica entre ambos. Bem, mas isto diz-se depois, claro, na bazofienta teologia, tantas vezes sofística. Seja como fôr, só um deus único e criador é pensável, quero dizer, como início de todas as coisas, ou melhor dito: como aquilo que se esconde em tudo e no início. E que é no desaparecimento de si ou de nós, que nos entrega o seu espírito. Ou pode-se dizer como se diz na tasca: que a vida é uma pergunta que se nos dirige, e voltando ao início nem é preciso dizer que a pergunta antecede a resposta. Mas pode suspeitar-se: será? Pois de certo e apropriado modo, proferir uma pergunta é colocar os modos de resposta, pergunta e resposta mutuamente se orientam na sua simultaneidade dialéctica, toda a gente sabe isso. É aliás por isso que os cabrões, com as suas perguntas e respostas de merda, nunca enganam ninguém, ou como diz o povo: andamo-nos é aqui a tentar enganar todos uns aos outros, a começar por nós próprios, claro. Um grandessíssimo teatro de pacotilha, é o que fazemos da vida, acrescenta já quase ao irromper da aurora, esse que sabe que a vida só tem dois modos interpenetrados: o trágico e o cómico. E que o resto é já conversa de sofistas, ou de vendedor, ou de engate, ou de poder próprio, enfim: política. Temos qualquer coisa de Job, nós, os do povo, para debater o sentido da vida só aceitamos como interlocutor o próprio Deus, não vamos cá em conversas com o que pensa fulana ou sicrano, ou com o que pretende beltranda ou cassandro, ou sequer com as tangas que contamos a nós próprios, essas palavras de medo e fechamento. Há coisas que só se falam depois da tragédia e da comédia, onde é difícil chegar sem soçobrar, ou melhor e mais precisamente: onde só se chega soçobrando. Depois de tudo. Deus é uma pergunta que aí se dá, talvez a única. E é por isso que no deslocamento sofístico da questão para outros planos, a própria palavra “Deus” não tem sentido nem orientação, por muito que a enchamos com cultura e religião, filosofia e teologia, ciências e saberes, éticas e estéticas, enfim, todas essas negatividades e positividades da mente e da vida. Falamos muito e o povo escuta entediado - quando escuta. Pois o povo sabe perfeitamente que a questão de Deus só se dá quando a tragédia nos dilacerou até ao fim, ou o riso fez com que tudo explodisse e se perca na sua própria falta de sentido. E quando tal descuramos, quando tal descuidamos, já não somos povo nem nada: não passamos de escravos das nossas próprias ilusões, coisas que nunca são nem podem ser nosso proveito e sustento. Grito e riso são os limites da consciência, e únicos orientadores desta: a dor, o amor, a ignorância, a ternura, isso dizemos nós ser o início, e que as palavras só depois assomam, e só ainda depois e então as ideias, como pequenos vampiros extasiados. Ao contrário do que os sofistas satisfeitos pensam encartar, foi isso que foi dito: em nós as ideias não passam de formas esquecidas de algo que foi vivo e brilhante, não passam de pequenos cadáveres que ressuscitamos indevidamente, e é por isso que o moscardo para começar a discutir que raio será isso da essência das coisas exclama: Ó Cálicles, traz-me aí um cavalo, um ustensílio, uma obra de arte, qualquer coisa. Aprender a beber sem cair, foi outra das suas indicações, e que raramente conseguimos: estamos sempre à beira de ser sugados pelo vórtice, na vertigem da nossa própria vida. Poderá dizer o puto de Copenhaga que todos os outros vieram depois tentar cuidar da ressaca, de Platão a Aristófanes ou Xenofonte, de todos os epicuristas e estóicos aos cépticos e ironistas vários. Poderá até dizê-lo na tasca, com mais ou menos vinho, com mais ou menos fado, todos o sabemos: a alma humana é um abismo quando para si própria se abre, e já ninguém vem a tempo de curar ressaca nenhuma.Tivesse vindo no início, é o que é, talvez assim ainda viesse a tempo, sabe-se lá. Mas como raio alguém pode vir no início? Pois de onde raio viria, não é pensável, foi isso que foi dito. Raio disso que não suportamos e então dedicamo-nos às ressacas. Curá-las, curti-las, descrevê-las, essas coisas que tanto nos distraem e orgulham. Repare-se até no tanto que sabemos fazer e dizer, das artes às ciências que espantosos que somos. Não deixa também de ser curioso como se mantém firme a ironia socrática, visto que o sentido de todo esse fazer e dizer é algo que desconhecemos, e que precisamente isso é que seria exigido antes de começar a fazer ou dizer algo que pudéssemos nomear como nosso. Nem sequer nos adequamos aos nossos próprios resultados, dos poemas às transformações tecnológicas apercebemo-nos que os processos e consequências do que fazemos e dizemos escapam totalmente ao nosso controlo e consciência. On me pense, dizia o outro ser melhor dizer e pensar. Também esse se dedicava ao abismo de si, essa terrível busca e interrogação própria, esse tenaz não-saber em que tudo se sustenta. Eu sei lá quem sou, diz o povo na tasca em que tudo soçobra ou se sabe soçobrável. Deixa lá, lança um, há-de apaixonar-se e perder-se, e regressar para mais uma cantiga, nem que seja a última. Cá o esperamos, no lugar onde por nós próprios esperamos, queremos dizer como desde o início dizemos: cá o esperamos no início, e que faça pois boa viagem, é o que desejamos para ele e para nós. Onde? Por onde? Para onde? tartamudeia um como se acabasse de chegar ou de acordar. Ora exactamente, amigo, diz o outro, está a ver: voltamos sempre ao início. Não há volta a dar-lhe, acrescenta um terceiro, e por aí em diante até ao início, claro. Aprender a tocar flauta na véspera da sua execução à morte, foi outra indicação socrática, que o sofista veementemente anula. O que está em jogo nos diálogos platónicos... começa ele a sua arenga, mas aqui na tasca não se safa, alguém o há-de mandar calar, embebedá-lo um pouco, ou simplesmente pô-lo na rua onde talvez algo o abalroe e o desperte, onde talvez se apaixone, desate a rir ou a gritar, sabe-se lá, é a única coisa que se pode fazer a alguém que não conhece o silêncio das cantigas nem o sopro das sereias. Pode ser que lá chegue, ao início, continuamos a dizer, e bebemos mais um copo, cantamos mais uma cantiga, damos por nós ainda à espera de nós próprios depois de todas as viagens, construções, buscas. Damos por nós aqui vivos, e já não é nada mau, quer-se dizer afinal: é aí que tudo começa, e também aí que tudo acaba, claro. De que raio se está afinal a falar? De Deus, caralho, de Deus. Bem, voltemos ao início etc

segunda-feira, junho 08, 2009

Contra-nota

Quanto mais em mim caio, maior é a vertigem.

segunda-feira, junho 01, 2009

Sem fortuna e sem religião, quem me abriria o paraíso?

em memória de Omar Khayyâm

A figura era quiçá simples: como que gradualmente compreendendo a serenidade de estar poisado em si próprio. Assim por dentro, digamos, não lançado para fora num embate e reacção contínua, mas assente por dentro, no seu sentir de si; e sempre aquela tendência para ser roubado a si, ou atirar-se para fora sem si, aos trambolhões no arrasto do tempo externo.

Percebeu também que era um assunto de vaidade, de vontade de aparecer na vida de fora; mas também de anseio de conexão, resposta, algo que desse outra palavra ao isolamento da existência. Nesse momento soube então o que sempre soubera: que a distinção entre o bem e o mal era um desvio milimétrico, a que estamos sempre arriscados.

Aprendeu então certo silêncio, esse calar de si que o depunha na pura impressão de ser, estar, haver e haver-se: aqui, e o mundo lá fora e dentro, e todos os rostos e coisas. E nesta simples figura percebia que era no cruzamento entre esse poisar em si, e a dinâmica viva com o resto no escoar dos dias, que refulgia uma serenidade que não se confundia com nenhuma anestesia ou fuga, desistência alguma. Cada vez mais aprendia a silenciar-se e deixar-se estar em si, antes de iniciar qualquer dia, e antes de deixar-se ir na profusa vida do sono. É a minha oração, dizia ou calava sorrindo, quando calhava um ou outro.

Não que acreditasse em qualquer deus, ou algo a que devesse dar nome. Mas tinha a impressão que o eco fundo do seu silêncio orante, anunciava uma presença outra, dentro de si e atravessando o escoar dos acontecimentos e memórias. E que isso se mostrava no seio da religiosidade, alguma; presenciava no entanto, que na maioria dos seus momentos, esta se estrilhaçava na vaidade em aparecimento gritado: tonitruantes imagens do subtil anúncio, leis e armas e ameaças e barulho na vontade de posse e poder fátuos. Certo espírito guerreiro, que ele abominava; que nos arrasta para fora de nós desfazendo-nos, confundidos combatemos no equívoco da verdade; quando não apenas para sermos e aparecermos muito mais do que simplesmente somos. A terrível vaidade, sem dúvida, essa filha menor do orgulho.

Não precisar de mais nada senão o que já se é e tem por simplesmente estarmos aqui; e não rechaçar nada que ao encontro venha na concôrdia e na generosidade. Porque tudo se dá e se doa sem perder-se, se não gritarmos o nosso eu no desespero do caminho. E na fugacidade das paixões fulguram encontros e revelações, silêncios tenazes que orientam a alma a si e onde a própria vida ecoa como um canto que se escoa e retém no próprio escoamento.

Soube também que a morte só podia ser a maior dádiva, tal como o nascer de todas as coisas no silêncio expressivo do todo. Aprendeu a ciência do vinho e da poesia, a tranquilidade do céu estrelado e das mãos amigas, e uma certa distância dos negócios do mundo. As pétalas das rosas tremiam no estertor de cadentes estrelas, e a álgebra ressoava na reposição de uma ordem que confusamente apreende a consciência estarrecida. Aguardava tudo sem deixar de agir, e a liberdade era essa pequena força que salva do horror do mundo e de si, no abandono de toda a fixação de poder.

“No próprio sono do eterno...” escreveu num fim de tarde um dos seus amigos, frase que suspendeu para que cada qual a completasse com a sua própria vida e canto; para que cada qual a retivesse na sua própria fuga.

Era manhã quando o encontraram morto, sentado à larga mesa do terraço, a cabeça pendente e a taça de vinho pela metade à sua frente, o pequeno caderno ao lado com o carcomido lápis. Enterraram-no no jardim, junto às flores, à vinha e aos arbustos. Laudaram-no com vinho e alegria, e nenhum sinal do enterro deixaram senão o próprio jardim e a vinha, que continuaram a cuidar; o céu e a alma, que continuaram a interrogar; e o clarão das paixões, que mantém o fogo aceso na revelação de rostos e significados, não deixou nunca de os visitar, mesmo na dor e na velhice, na injustiça e na opressão, no tédio e no desencanto.