segunda-feira, maio 31, 2010

A santidade é a saúde da alma, ou se preferirmos: o sentido pleno do corpo.

segunda-feira, maio 24, 2010

Mas que seco estás hoje, diz aquele que ora, interrompendo a oração. Pensa ele. Mas na verdade, a oração é ininterrupta como Deus, e é apenas o orante que desatenta e pensa desatar.

segunda-feira, maio 17, 2010

o fumo do chá
a brisa
o sol
chilrear de pássaros

segunda-feira, maio 10, 2010

Disriposte (cont.)

Tais convergências e divergências não elidem nem se confundem com uma qualquer adversidade vital, mas até a intensificam e definem, fora das dicotomias simplistas e falsamente resolutivas a que escapa, precisamente, a obscura e densa adversidade vital. Toda a adversidade é um cruzamento de convergências e divergências, que possibilitam e se constituem na dança e no combate, no encontro e na separação; o próprio terreno onde a vida e a morte se conjugam em tenazes interrogações. “Se faço guerra ao cristianismo, de tal tenho direito unicamente porque nada vivi deste lado de desgosto ou tristeza – pelo contrário, os seres mais dignos de estima que conheço foram cristãos autênticos, e de todo não guardo rancor aos indivíduos por aquilo que é fatalidade milenar. Os meus próprios antepassados eram eclesiásticos protestantes: não tivesse eu recebido deles um sentido elevado e puro, não vejo de onde me viria o direito de fazer guerra ao cristianismo. Em ocorrência, a minha fórmula: o próprio anticristão é a lógica necessária na evolução de um verdadeiro cristão, em mim o cristianismo ultrapassa-se a si mesmo.” (Nietzsche, Fragmentos póstumos, KGW, VIII) O estatuto e sentido de tais superações ou interpelações, os cristãos o vão vivendo e contra-vivendo nas suas instanciações diversas; algumas, tais como a crítica ao fixismo ideológico, condu-los à intensificação da concreção divina e suas tensões temporais e históricas; outras acutilam a recusa em fechar a temporalidade em si mesma, recusando o fogo da terra e do tempo enquanto últimas instâncias: o eterno retorno não corresponde ao retorno do eterno, embora na sua mútua exclusão se esclareçam e confrontem. Para um cristão, o último acto está sempre por ocorrer, e a temporalidade não resolve a sua perca retornando a si mesma; e é esta incapacidade estrutural e dinâmica de se refazer, que pode ou não abrir para algo de inesgotável que advém na própria perca.

Nada disto significa que os cristãos sejam uma divina configuração histórica, como é evidente, eles que se admitem em queda e confusão na sua origem mesma; a história de Roma, assim como a do cristianismo e da Igreja, é como todo o trecho de humanidade: o terror vivido no estertor entre beleza e maldade, pânico e bondade; e com mais tensões entre estes do que em inúmeros mais serenos lugares que não enfrentam o abismo. E aqui se cruza a história de Roma, de quem se diz com muita razão: locuta, causa infinita. Roma, tão mais do que cristã; e tanto menos.

Roma, a loba; Roma, a mãe; Roma outrora e por outro lado; Roma a que ganhou Tróia, e por esta se venceu; Roma auto-proclamando-se de nega-ociante, em contraponto ao ócio da contemplação filosófica; e aqui converge o martelo do tio Friedrich, e também diverge: a música é tudo menos negocial e imperial, mesmo quando operática; e o ócio tem segredos activos que quebra os arcos e crava setas no dorso do inumano; e também converge o tio Emil, em quem a suspensão céptica não é apenas epistemológica mas um grito ontológico: não crer que hajam coisas, não aderir à evidência da existência, incluindo a de si próprio, dá-se precisamente adentro de si e da vida, e em máxima violência ; é nesse primeiro momento do próprio haver bruto de si e do resto, que o tio Emil executa com toda a ferocidade a actividade concreta da negação. “Os únicos seres com os quais verdadeiramente me entendi, não deixaram obras. Para sua felicidade ou infelicidade não eram escritores. Eram algo de mais: mestres do desgosto. Um deles tinha estudado teologia e destinava-se a ser pastor, mas nunca chegou a sê-lo. Nunca, nunca esquecerei a conversa vertiginosa que tive com ele uma noite inteira, há cinquenta anos em Kronstadt, na Transilvânia. Depois desta conversa, parecia-me tão necessário viver como morrer. Se não se tem em si a paixão do insolúvel, não se pode representar os excessos de que a negação é capaz, a impiedosa lucidez da negação.” (Cioran, Conversa com Fritz. J. Raddatz) Não se trata de niilismo temático, de ter uma tese negativa acerca da vida, de si ou do real: trata-se de agir a nadificação imanente ao tempo, a sua actividade fundamental e originária adentro da primeira e possível coisa que haja; seja o que for; e aqui entra-se no demoníaco, essa antecâmara da fé; e assim, também aqui converge e diverge o cristianismo.

Poderá parecer com esta conversa toda que este discurso se quer filosófico; mas não o é de todo, nada aliás lhe seria mais estranho. Digamos que o dito vai dito, mas em modos que não lhe correspondem directamente, talvez para despistar ilusões e juízos de tribunal. Não se dança nas caves, dizia-se em Paris há umas décadas ou séculos; e como sabem os que não sabem, também de todo não se tratava de política, quer-se dizer, consenso algum era visado. Havia qualquer coisa que recusava todo o tipo de espera, ou o céu que finalmente lhes caíra em cima da cabeça; e assim voltamos sempre a Roma por ínvios e desvios sempre, como no ditado: Quem tem verbo vai a Roma; todos os caminhos etc; e essa pequena aldeia que na adversidade resiste, na banda desenhada em que os aldeões dizem: Estes romanos são loucos; loucos aquedutos, louco direito romano, louca pax; e o enorme boi mudo de Aquino mais à frente, depois de César com César. São infindáveis os ínfimos pormenores que se entrecruzam estilhaçando de acontecimentos o horizonte romano, a sua história eterna.

Já vão longas estas breves notas, e o tempo para encurtá-las já passou. Como se costuma dizer nestas coisas: vamos falando; desde o início dos tempos aliás que vamos falando: as únicas conversas que valem são aquelas que não têm fim, e que ninguém sabe onde e quando começaram; e ganha-se também assim uma certa serenidade, um certo grau de respiração e movimento: é a própria noite que é a aliada da vigília, e os dias que se escoam são os mesmos que retêm o único e primeiro dia, a nocturna e inaugural manhã onde a primeira palavra rasgou o universo e disse: eis.

Um abraço.

segunda-feira, maio 03, 2010

Disriposte


para Klatuu Niktos


A primeira coisa a ter aqui sob vigília, é o deslize em que o voo da águia se torna simulacro de si mesmo: o aviador, bêbedo de visão global, e numa síntese periférica em que contempla o vasto horizonte, doa a esta a sua vontade de verdade; e na sua idolatria da totalidade, mutila a visão das alturas, elidindo o pólo que nela produz consistência e realidade: os pormenores vivos, da brisa que faz tremer a flor da montanha aos do nariz do coelho que espreita fora da sua toca; e só a dinâmica entre ambos os pólos, o vasto horizonte e os ínfimos pormenores, permite que os voos picados sejam eficazes, e que as acções ou pensamentos toquem o magnetismo secreto da vida. O costume nestas coisas: a macrovisão sem microvisão não passa de um pé-coxinho que pretende vencer maratonas, e inversamente.

Vivemos hoje uma curiosa época cultural, em que os simulacros de sistematismo e de positivismo produzem doxa de conhecimento em cada qual, numa tendência de generalizada falsificação de sabedoria: da razão pura à economia de mercado, das obras literárias às engenharias, da física quântica ao sentido histórico – todos nos pretendemos informados e conectados, activos e analíticos, conscientes e participativos. Como é bem de se ver, tal só é possível em prévias formatações que se desconhecem a si mesmas: o pobre aviador, depois de abandonar a atempada e atenciosa visão de pormenor, já nem de horizontes vive, e orienta-se tão só pelo resumo de indicações de bordo que as diversas torres de controlo estabelecem; e é a confusão destas, que lhe dá uma ilusão de ainda lidar com os ventos e forças do mundo e da vida. Infelizmente, a maioria das indicações que recebe, constituem-se numa geografia alucinada e retida no conflito das torres. "As ondas, se pudessem pôr-se a reflectir, acreditariam que avançam, que têm uma finalidade, que progridem, que trabalham para o bem do oceano, e não deixariam de elaborar uma filosofia tão néscia quanto o seu zelo." (Cioran, Esquartejamento) Nesta e outras conturbadas marés é que se perdeu o velho adágio da sabedoria irónica: Há os que sabem, e os que não sabem; os que sabem, sabem que não sabem; e os que não sabem, pensam que sabem. Neste preciso momento, o tio Emil gargalha no seu túmulo vivo.

Não é aqui lugar para macrovisões nem microvisões, e muito menos para as faíscas mais ou menos fátuas entre ambas; mas tão só para breves indicações, que se pretendem sábias para uns, e néscias para os que pensam. Ninguém disse que era fácil despertar e descobrir que nem o sono e a morte ou o sonho, deixam de ser activos na sua ausência pulsante, e que se sonha acordado e se dorme com o presente. Aqui, é o tio Friedrich, que atravessado pela dor e pelo cansaço, caminha num enfrentar-se com destemor que se quer exultação pura; a tomada em riste da potência do próprio ser: a música, no sublime e no atroz; o pathos absolutamente sendo, o pathos do tempo vivo e mortífero; aqui rasgam-se violências tonitruantes com pequenos toques de melancolia ou raiva. Escutai, néscios e sábios, silêncio.

O centro mesmo do ímpeto martelado, é a recusa de tudo o que não cante ou danse o todo e próprio tempo dos acontecimentos em que acontecemos; a profusão trágica e eufórica dum pensamento que recusa toda a cristalização; trata-se dum pensamento que recusa ser duplicidade e sinal, que tal como a música se recusa à imagem e à representação fixas e separadas; e que se quer expresso directamente na sua própria vitalidade e actividade. Aqui reside um ponto nevrálgico, de difícil focagem: imbuídos de representações e figuras, os textos do tio Friedrich permitem legitimamente estabelecer uma imagem do mundo, da vida e do humano; e podem sempre explicar-se inconsistências com diversos malabarismos de contextualizações e interpretações; mas aqueles que pretendem fixar os dedos ígneos das suas palavras numa doutrina de julgamento em cristalizadas identificações, continuarão sempre a fazer rir o tio Emil; são aqueles aviadores tontos que se ufanam de ter sobrevoado e ultrapassado a cordilheira de Platão e de Kant, ou do transcendente e do contemplativo, mas a estes nem sequer chegaram.

E neste ímpeto vai o confronto com a cristandade: esta corresponde ao negativo, ponto por ponto, do tempo vivido, arremete o tio Friedrich, e a euforia trágica transmuta-se em quietude contemplativa, distância sem melancolia, desvitalização e despotencialização; o pensamento cristão corresponde a uma cristalização dogmática de conceitos e representações que pretendendo desvendar a vida, a substituem por um sonho quieto como a morte sem morte: a eternidade, esse impensável conceito temporal, é o seu rosto primeiro, e a oração a sua actividade fundante; pensamento, quer-se dizer – formas de vida; trata-se assim duma adversidade vital, e portanto total: contra o idealismo para os néscios. Mas o eterno enquanto rosto de Deus, não corresponde à intemporalidade da idealidade, seja à de um teorema seja à dos estertores da beleza, e muito menos às cristalizações da mente assustada; corresponde sim à interrogação: Onde isto tudo que desaparece irrevogavelmente? Pois o fiat da vida é o seu próprio decorrer; viver executa-se enquanto crescente aniquilação de si. E o eterno, precisamente, não trata aqui da retenção ou retorno do que há, mas da voz que fala no próprio não-haver; a fé não trata de preencher a negatividade temporal com o sonho da imortalidade, nem de dar forma imaginária às forças obscuras do ser e da vida: a fé trata de um diálogo limite com o nada, com o não-havendo da vida que se escoa, consciência funda da palavra orante, a que não cala o silêncio nem confunde o eco. Deus é a voz que fala no deserto do mundo, não porque negue este, mas porque é este mesmo que se nega a si próprio no seu próprio acontecer: o fogo da terra alimenta-se da sua própria combustão, e a sua eternidade é uma dor sem fim no abismo da negação; mas aquele que olha o vazio de frente, vai ao fim da vertigem do tempo, e escuta o Deus que se revela na impossibilidade da combustão se doar a si mesma: o sem-nome, o da peregrinação naufragada no murmúrio da incessante busca; este é um Deus que dança no fundo do próprio abismo, quando a corda ou o nosso porvir próprio se quebram ou largam; e é também um Deus que lança cordas e porvires, e que na sua humanidade caminha por cima do tempestuoso abismo, no centro mesmo da vertigem; e que diz que a mais pequena ternura, a mais pequena pedra da menos notória berma – são já vitória e fundação. Eis um Deus que dança, não a música da terra, nem a das esferas celestes ou das fúlguras ideias e paixões; são antes estas que a música do Deus dançam, em ponto e contraponto, ilhas e afundamentos. De que nos valeria a leveza, se não erguesse o peso do mundo? Escutai, néscios e sábios, silêncio.