segunda-feira, novembro 21, 2005

Bíblia

Um dos blocos documentais do Novo Testamento é, como se sabe, constituído por cartas, epístolas. Ora, um dos primeiros aspectos da epístola, é a de ser um texto dirigido por alguém a outrém, individuais ou colectivos - um texto intrinsecamente dialogal. Que se apresenta imediatamente como palavra dirigida e interpelando o outro ou os outros na concretude e singularidade da sua existência, proferida igualmente por uma existência singular e concreta. Tratam-se portanto de textos imediata e explicitamente situados - temporal, geográfica, cultural e psicologicamente.

E tal como os restantes textos neotestamentários, estão redigidos em grego, que à época era uma língua transnacional, um pouco como hoje o inglês. Para além de indicar a transnacionalidade, ou multinacionalidade, dos remetentes e destinatários, apresentam-se assim como abertos à comunicação com qualquer um, filósofo ou sapateiro, pagão ou cristão, homem ou mulher, servo ou senhor, etc.

E instigam, pela sua própria dialogalidade interna, ao diálogo vivo com o presente, à comunhão com o redor. Evocam uma unidade na diversidade, incompreensível, misteriosa - mas reconhecível.

E as diversas flutuações nas definições e pontos de vista e discurso são explicitamente dialécticas. São pensentimentos diversos que se confrontam, entrelaçam, se interrogam mutuamente. São textos geradores - que menos que dar ou doar resposta ou sentido, mais que anseiam por tal.

E é neste contexto que entendo a noção de Tradição, isto é, que a Revelação não se esgote passivamente nos textos bíblicos. Que a palavra se revele também na relação concreta que cada qual tem com a interpelação dos textos, por exemplo e neste caso, as epístolas neotestamentárias. A interpelação e desafio à compreensão e execução, são elementos intrínsecos aos próprios textos.

E a sua confrontação. A verdade viva que se mostra, que vai revelando na medida da sua presença nos tempos históricos, e transbordando-lhes. E que sobretudo nos vai revelando a cada qual, próprios e individuais e dialogais, imersos

E os indícios em textos e até pessoas contemporâneas, expressões diversas, os indícios da relação que cada um tem com a interpelação cristã - é também expressão, revelação de Deus.

E sobretudo em nós próprios, no segredo de nós próprios. Porque se não se desvela e revela a nós próprios vivos e concretos, se se esgota nas representações e modos humanos de o ansear, ou se não clama por nós com o nosso nome único - não seria um Deus vivo, e a sua palavra estaria morta, não falaria e agiria nas nossas vidas e consciências, do modo misterioso que cada qual sabe.

São textos fundadores, porque movem para Deus, para que Este nos devolva a nós próprios, e à vida. E o resto é conversa.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Meios buracos, ou a comichão do sieur Pascal

Foi numa conversa de circunstância ou talvez de sempre, em que uma pessoa que acabara de lhe ser apresentada há quase tanto tempo como ainda não, lhe perguntara ambiguamente sorrindo: Mas porquê que exiges tanto de ti, das coisas, da vida – daquele modo que nos faz sentir que está a falar também de si própria. Também. Porque a ele também se referia e ecoava, ele reconhecia-se no reflexo. E pensava que havia “verdade” no que lhe fora dito e ouvido, coisa rara e banal, e que a “contra-verdade” era igualmente válida, que ele cumpria-se pouco na exigência, e que por outro lado e mais “contra-verdade”, devia exigir mais intensa e extensamente. E então pensou: Mas não será isto típico dum tipo de pessoa que exige demais de si, das coisas, da vida, ou melhor e “contra-verdadeiramente”, que tem a bazófia de tal, enche um balão qualquer de estilo e insuficiência, escondendo-se na representação das exigências para melhor desaparecer e fazer precisamente o contrário: exigir-se o mínimo possível, como se nada disto, de si, das coisas, da vida, tivesse afinal a ver consigo e o implicasse “verdadeiramente”. Como se ele, as coisas, a vida, ficassem do lado de fora. Não é nada connosco. ‘Tá-se bem. Um rapaz simpático, que pensa ter um discurso e atitude e peras, e que dirigindo-se à pessoa que acabara de lhe ser apresentada e lhe dirigira tal pergunta ou interpelação, responde, durante imenso tempo responde: Não sei, não sei, e não fazia mesmo a mínima ideia, não fazia a mínima seja do que fosse, ou melhor, sabia e sabe lá ele se fazia ou faz ou não a mínima de seja o que for e seja…

segunda-feira, novembro 07, 2005

Etimologias

Deus – substantivo singular masculino.

Deus: absolutamente subsistente.
Deus: não-masculino, não-feminino, não neutro.
Deus: universal.
Deus: Aquele que é.

Deus – onstantivo único polissexual.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Cruz

A atitude cristã consiste em não justificar o mundo, e manter intacta a santidade de Deus. Esse é aliás um dos infindos signos que a crucificação do único asseguradamente cristão realiza. A lei natural não é elidida (Ele morre) assim como a regulação social, política, religiosa, etc se mantém em todo o seu esplendor (Ele é condenado). A superação de ambas dada na ressurreição e no amor divino é o ponto de tensão máxima face à lei natural e humana – o que só acontece, precisamente por estas não serem elididas.

O signo da cruz não elide, como é directamente evidente, as dores da existência e da vida. Elas ganham sem dúvida outro sentido prático – por exemplo, o de provação, de tensão entre a fé e os sentidos, a experiência, o entendimento, etc, assim como de possibilidade de reconfiguração da relação natural com a dor, ou se preferirmos com o índice prazer/desprazer que natural e espontaneamente nos rege. Este último ponto não é evidentemente exclusivo do cristianismo, mas estende-se para outras formas de religiosidade assim como de filosofia, sobretudo quando esta era uma prática e terapia de vida e não um sistema discursivo de teses e doutrinas. As mortificações religiosas não são, no seu fundamento e sentido, nem fugas nem recalcamentos; na prática, como se sabe, cada caso é um caso.

A fé cristã não “serve” para nos adequar ao mundo e deixar de sofrer ou de ter obstáculos ou escândalos com o não-sentido da vida e injustiças várias da nossa mui amada espécie, muito pelo contrário. Para além de não elidir as tensões e contradições da vida, a fé cristã produz conflitos próprios – tensões internas e externas. Não é um sossego mundano e natural que está em jogo. A fé implica um combate interior e exterior contra tudo o que se erigir como obstáculo à reconfiguração existencial cristã a que cada cristão é chamado.