Estação nocturna
Dou por mim a discutir o ser dos outros, as enredadas e nebulosas vias de cada qual ser cristão, coisa secreta e absoluta e exclusivamente singular e íntima. Dou por mim a dialogar sem ser no silêncio com que se escutam os anjos, na diáfana abertura do coração. Dou por mim a executar-me num cristianismo periférico, sociabilizado na contratualidade, mundano.
Dou por mim esquecendo que a renovação de todas as coisas, do primeiro átomo à última alma, é algo de totalmente gratuito - o simples acto de dar, de se dar sem mais, é a espada que fende o mundo ao meio, fazendo brotar o sangue e a vida onde não habitam senão sombras esvaídas e indefinições. Nada é o que parece, e no amor, tudo se torna o que parece. Não é magia, é revelação - tudo está lá, aqui, ali. Somos apenas nós que a maioria das vezes não estamos lá, tantas e tantas vezes não estamos onde estamos, perdidos nos meandros estratégicos do medo e do desejo, cheios de cordas e sirgas puxando-nos aquém e além, confusos e definidos como toda e qualquer história fechada.
Oh Deus, tantas e tantas vezes esquecemos a boa nova, trazemo-la na boca com o coração ávido de vãs guardas e vaidades, defesas do ser encurralado que somos ao não desabrocharmos, bloqueados e perros como borboletas congeladas. Fazemos pois política, gestão de grupos, psicologia - mas nunca amor, nada gratuito, negociantes de Veneza e de todo o mundo, organizadores de horizontes e viagens e acções diversas - presos na estratégia, fechados à providência, sufocados nos dias que passam e mantendo o sorriso iludido de quem é senhor da viagem e de si e da vida.
Mas há sempre um grito ou um rumor para acordar, porque Tu provês tudo, e nenhum irmão descansa até ao fim.
E lembro uma irmã dizendo: Mesmo antes de pecar, já sei que sou perdoada. O problema não é esse. É sim - o que fazer com essa liberdade.
A graça é gratuita, e se não o esqueceres, só poderás dizer que é para todos - sem excepção, sem juízo nem lei, para todos.
A única coisa que conta.
Conhecemos isto na simplicidade do quotidiano afectivo, coisas que pouco no parecer estão de falar, e que devido a tal se calam ou exprimem exagerada e deslocadamente. Quando após uma sacanagem ou desatino a um amigo, amado, familiar, este apaga até ao zero a ferida e o motivo e nos acolhe na lágrima e na alegria - e sabemos de antemão que nos amará e acolherá mesmo que desabemos no crime. Faz isso com que o nosso coração aproveite tal para sacarmos sacanagens e abusos? Ou abre-se ele à vontade de nunca mais magoar ou torturar os olhos que nos acolhem? O amor depositado no coração abre este ao amor, limpa-o, purifica-o de raivas e medos e ansiosas sofreguidões. Só no amor descansamos, todo o resto é tormenta - e todo o coração, sabe disso.
E como é que querem que uma pessoa durma depois de escutar uma coisa destas , depois de escutar o seu ressoar noite dentro no coração e na mente. Bem que podem vir todos os calmantes e anestésicos do mundo, pois mesmo que adormeçamos, ficámos mais que acordados - para a eternidade.
Eram cinco da manhã e acabara de ter ido à Estação Nocturna, acabara de imprimir e ler o texto há sete horas atrás, mas o silêncio do seu ribombante eco continuava a crescer em mim, tinha os olhos como fachos ardentes e olhava para a rua, da varanda onde fumava um cigarro olhava para a rua, como se tivesse acabado de chegar de marte, como se todas as nossas regras e técnicas estivessem absolutamente desadequadas, fumava o cigarro e não pensava em nada, a rezar que nem um maremoto com palavras ininteligíveis, cegos anseios de alegria e destemor, mais vivo que todos os animais do mundo, sereno como a felicidade.
O reino dos céus está entre vós, o reino dos céus está dentro de vós - somos umas bestas. Queremos dar forma ao que é bruta liberdade. Temos medo da boa nova, e amenizamo-la. Voltamos à sociedade e à natureza sem nada nas mãos, com palavras esvaziadas e acobardadas. Mas claro, vamos à missa ao domingo, em família, integrados. Somos todos cidadãos respeitáveis, nenhuns criminosos. Tal como os fariseus. Pensamos ser um equívoco a Sua condenação, e os fariseus pensavam-Na acertada - mas o sentido do juízo é o mesmo: a lei é justa, e é a suprema aferição. Não nos passa pela cabeça que não houve equívoco algum, e que o amor é condenado sob qualquer justiça porque transborda esta e sopra onde quer e para quem quer, à borla para o justo e para o pecador, para quem vai à missa e paga os seus impostos assim como para a rameira que vai à tasca ou o prostituto que se esvazia na viela.
Ecce homo.
Mas porque O esquecemos?
...
Um abraço irmão, Samuel, e mantém essa acha na fogueira. Não tenhamos receio de gaguejar o incompreensível, e de por ele viver.
E que a graça te acompanhe, invada, nos acompanhe, invada, a todos - pecadores.
Amen.
P.S.: E do fundo da água ecoaram rumores .
Dou por mim esquecendo que a renovação de todas as coisas, do primeiro átomo à última alma, é algo de totalmente gratuito - o simples acto de dar, de se dar sem mais, é a espada que fende o mundo ao meio, fazendo brotar o sangue e a vida onde não habitam senão sombras esvaídas e indefinições. Nada é o que parece, e no amor, tudo se torna o que parece. Não é magia, é revelação - tudo está lá, aqui, ali. Somos apenas nós que a maioria das vezes não estamos lá, tantas e tantas vezes não estamos onde estamos, perdidos nos meandros estratégicos do medo e do desejo, cheios de cordas e sirgas puxando-nos aquém e além, confusos e definidos como toda e qualquer história fechada.
Oh Deus, tantas e tantas vezes esquecemos a boa nova, trazemo-la na boca com o coração ávido de vãs guardas e vaidades, defesas do ser encurralado que somos ao não desabrocharmos, bloqueados e perros como borboletas congeladas. Fazemos pois política, gestão de grupos, psicologia - mas nunca amor, nada gratuito, negociantes de Veneza e de todo o mundo, organizadores de horizontes e viagens e acções diversas - presos na estratégia, fechados à providência, sufocados nos dias que passam e mantendo o sorriso iludido de quem é senhor da viagem e de si e da vida.
Mas há sempre um grito ou um rumor para acordar, porque Tu provês tudo, e nenhum irmão descansa até ao fim.
E lembro uma irmã dizendo: Mesmo antes de pecar, já sei que sou perdoada. O problema não é esse. É sim - o que fazer com essa liberdade.
A graça é gratuita, e se não o esqueceres, só poderás dizer que é para todos - sem excepção, sem juízo nem lei, para todos.
A única coisa que conta.
Conhecemos isto na simplicidade do quotidiano afectivo, coisas que pouco no parecer estão de falar, e que devido a tal se calam ou exprimem exagerada e deslocadamente. Quando após uma sacanagem ou desatino a um amigo, amado, familiar, este apaga até ao zero a ferida e o motivo e nos acolhe na lágrima e na alegria - e sabemos de antemão que nos amará e acolherá mesmo que desabemos no crime. Faz isso com que o nosso coração aproveite tal para sacarmos sacanagens e abusos? Ou abre-se ele à vontade de nunca mais magoar ou torturar os olhos que nos acolhem? O amor depositado no coração abre este ao amor, limpa-o, purifica-o de raivas e medos e ansiosas sofreguidões. Só no amor descansamos, todo o resto é tormenta - e todo o coração, sabe disso.
E como é que querem que uma pessoa durma depois de escutar uma coisa destas , depois de escutar o seu ressoar noite dentro no coração e na mente. Bem que podem vir todos os calmantes e anestésicos do mundo, pois mesmo que adormeçamos, ficámos mais que acordados - para a eternidade.
Eram cinco da manhã e acabara de ter ido à Estação Nocturna, acabara de imprimir e ler o texto há sete horas atrás, mas o silêncio do seu ribombante eco continuava a crescer em mim, tinha os olhos como fachos ardentes e olhava para a rua, da varanda onde fumava um cigarro olhava para a rua, como se tivesse acabado de chegar de marte, como se todas as nossas regras e técnicas estivessem absolutamente desadequadas, fumava o cigarro e não pensava em nada, a rezar que nem um maremoto com palavras ininteligíveis, cegos anseios de alegria e destemor, mais vivo que todos os animais do mundo, sereno como a felicidade.
O reino dos céus está entre vós, o reino dos céus está dentro de vós - somos umas bestas. Queremos dar forma ao que é bruta liberdade. Temos medo da boa nova, e amenizamo-la. Voltamos à sociedade e à natureza sem nada nas mãos, com palavras esvaziadas e acobardadas. Mas claro, vamos à missa ao domingo, em família, integrados. Somos todos cidadãos respeitáveis, nenhuns criminosos. Tal como os fariseus. Pensamos ser um equívoco a Sua condenação, e os fariseus pensavam-Na acertada - mas o sentido do juízo é o mesmo: a lei é justa, e é a suprema aferição. Não nos passa pela cabeça que não houve equívoco algum, e que o amor é condenado sob qualquer justiça porque transborda esta e sopra onde quer e para quem quer, à borla para o justo e para o pecador, para quem vai à missa e paga os seus impostos assim como para a rameira que vai à tasca ou o prostituto que se esvazia na viela.
Ecce homo.
Mas porque O esquecemos?
...
Um abraço irmão, Samuel, e mantém essa acha na fogueira. Não tenhamos receio de gaguejar o incompreensível, e de por ele viver.
E que a graça te acompanhe, invada, nos acompanhe, invada, a todos - pecadores.
Amen.
P.S.: E do fundo da água ecoaram rumores .