segunda-feira, novembro 27, 2006

Laudes

Louvados aqueles que não se fecham, porque tudo acaba em si, e só a abertura permite a larva espreitar a borboleta.

Louvados os que procuram a luz lá fora, a noite dos saberes, a deflagração do coração.

Louvados os que a verdade acode, transbordando-os de ignorância, pequenos e felizes como a gota de chuva marítima.

(Meu deus, porque sois bom, tenho muita pena de vos ter ofendido. Ajuda-me a não tornar a pecar.)

Louvadas as lágrimas que limpam a dor, e a aumentaram.

Louvados os lobos que ganindo lamberam o medo, e o pastor que os amou. Louvados os anjos que acorreram à chamada.

Louvada a mãe que nos trouxe à terra, que por nós se descalçou e atravessou o vidro e o fogo.

Louvada a boca que sustém o vento, louvada a barca do seu canto, louvada.

Louvado o lixo que nos constrói, e a língua que o destrói.

Louvadas as estrelas da noite e os carris do cansaço. Louvadas as viagens sem caminhos, os brinquedos e as cerejas.

Louvada a morte que nos orienta, o sangue das baratas adormecidas nos prédios, louvada a morte.

Louvada a palavra que nunca ouvimos, louvado o pai dos nossos dias, o chão que não sabemos pisar.

Louvados o escaravelho, a âncora e o batel. Louvadas as asas daquele que esteve em fuga nos nossos passos, louvado o pão que nos sustém.

Louvada a tua mão na minha, meu amor, louvada onde de tudo me protejo.

Louvada a bonança que não exclui a tempestade, louvado o acolhimento do estranho no caminho.

Louvada a espera.

Louvado o acto.

Louvado Deus em tudo e para sempre, amen.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Igreja 2

Ele estica os braços num abrir de olhos, num desejo de luz e visão. Ele mexe-se numa atmosfera pesada de invisibilidade, sente o corpo envolto por uma densa liquidez de mel, porosa. Ele mexe-se e apenas o tacto é visível, move-se sem som, odor, imagem – o tacto incendeia uma indefinida direcção, um horizonte em cegueira, redondo.

Já não reconheces aquilo em que te conheces?

Ele roda pelo espaço sem limites apreendidos como se se entregasse gradualmente ou se esvaísse de sonho para sonho, um peixe nadando estonteado oceano a largo, E o oceano se tornar um texto geométrico, uma caligrafia que nomeia e cria, O nada, A morte na semente.

Ele embate.

Algo o fixou no gesto total da sua acção. E interroga, como se fosse um espelho ou um guardião da porta. Ele pára, e essa quietude é uma expansão que se manifesta numa explosão tremenda na raíz do tacto. Assim a palavra falasse no espaço, o verbo agisse no movimento, a boca abrisse e tudo engolisse em direcção ao infnito.

Tenho visto muitos vidros assim eléctricos como olhos esgazeados ou diamantes de órquidea violenta, Acções nos dias que se acumulam uns nos outros na caixa da insatisfação, Mas fala porque eu te nomeei, Fala e ponho à prova a questão silenciosa, o nervo comum a todo o pensamento, a imagem matriz do sonho em que a humanidade se estilhaça. O olho amplia-se à visão esférica englobando o espaço em redor, Não reconheces o infinito que te sugeriam as palavras subliminares? Se alguma vez se pudesse falar, dirias Gota Folha Vento Corpo Fogo Céu, sem projecção nenhuma, Não Não Não, Onde se silenciou o rumor, o poder se tornou prisão, Fala, a palavra, e se atinja por fim o princípio, Ou seja, ver a visão que nos olha através, Diz diz diz poder Ouvir e Olhar e apreender dentro do Espanto Dentro do espanto.

Um rumor surge na boca do estômago. Uma trégua numa treva: luz. Irrompe o gesto algures, nalguma madrugada.

Os dentes cravam-se no pânico, esse efeito do espanto. Acorda-se dentro do gesto. Gelo e quietude. Um som oco devora a madrugada.

Foi-se a semente, a planta imaginada.

Onde se separaram as linhas de acção do espanto e da voragem? Era uma tensa e feroz situação. A velocidade habitava a ânsia. A planta crescia na pele, alimentada pelas veias. E os orgãos do corpo cresciam na dor de expansão.

E eles constroem sem contemplar, vivem sem respirar. Eles, os apanágios do medo.

No sangue do cimento.

No abismo das janelas.

E o rumor acende-se no âmago dos dias. E o rumor é os dias.

A planta cheia de sangue, os dias de força, uma folha na água, gotejando o silêncio.

No toque da imagem apagada, o coração bombeando fracamente o sangue.

Sabem o fogo subtil que é necessário manter constante e regular em risco de explosão ou apago? Somos as mortais latitudes do nosso próprio projecto. Ou doutro modo: do nosso próprio pânico.




(1)

segunda-feira, novembro 13, 2006

Kepha

Essa coisa do amor estremecido no medo e insegurança perante a própria estranheza do amor.

É o mundo estremecendo perante a violência que o amor nele perpetua, a contradição dum abismo da sua, e nossa, primeira natureza.

Isto de fazer igreja não trata apenas de executar o amor divino, é também a acção de o negar, de lhe resistir com toda a nossa fechada e amedrontada humanidade.

O que nos vale são os anjos e os santos.

Isto é, Deus em nós, e connosco, apesar de tudo.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Esta manhã

Trago o sumo de laranja, acendo um cigarro, abro a janela. Não chove, dormi bem, mas sem sonhos de que me lembre. Uma amiga minha, cuja vida está suficientemente desarranjada para repensar algo de si e do resto, dorme na sala numa aparente tranquilidade fortalecedora. Acabo o cigarro. Faço outro sumo de laranja que deixo à cabeceira da minha amiga. Vou ao quarto deixar um beijo à minha esposa. Lembro-me doutro amigo de há muito, irmão de água como se costumava dizer em certos lugares e ambientes, cuja vida e corpo e coração estão de pantanas. Não me esquecer de lhe telefonar logo à tarde. Saio. As ruas estão desertas. De pessoas, quero eu dizer. O papagaio da vizinha olha-me num raro silêncio sem assobiar nem proferir o seu cómico Olhó gelado Olá… E vejo o gato preto que mora na chaminé abandonada, guardião da rua e dos seus segredos, escondido atrás dumas plantas. Olhamo-nos um bocado olhos nos olhos, como num assentimento de algo indefinido mas reconhecido por ambos. Entro no café, contrastadamente cheio de pessoas e ruídos e a televisão já acesa a bombar delírios de tédio e medo disfarçados de alegria. Volto a pensar numa senhora que tem nestes últimos dias invadido a minha mente e o meu coração, uma senhora que me cala e que não conheço pessoalmente, uma senhora que recusa o sangue injusto do mundo, das bárbaras touradas aos governos das cidades desgovernadas, e que desconfia do lado florido do fado. Uma senhora por quem neste momento oro, dum modo que só Deus sabe e eu muito menos. Não me esquecer de acender por ela uma vela a Maria, gesto que talvez essa senhora não aprecie. Acabo o café, o outro cigarro, dirijo-me para a paragem do autocarro. A cidade agita-se, somos centenas em movimento, uns mais acordados do que outros. Somos centenas, sim, milhares e milhões, agitando-nos. Não tenho a certeza se alguns de nós sabem o que andamos aqui a fazer.