segunda-feira, novembro 24, 2008

Foi-se, com citação de nanaqui

É preciso não esquecer, sobretudo nas alturas de gáudio e contentamento, que a coisa verdadeiramente terrível – é nascer; ser trazido à dor e à devastação, que seja como e quando forem – acabam sempre por ter a última palavra.

Ir para a ala dos doentes terminais conviver, na véspera da sua lua de mel, é tão só manter a tensão que a nossa lucidez exige.

No monoteísmo tanto o terrífico como a exigência de lucidez se intensificam até ao absoluto: estar perante Deus, só perante Deus, é responder por tudo aquilo que se é e faz e diz desde que se nasceu, é responder absolutamente por si.

(São máximos, e então são cegos, dolorosos, como se sabe, impossíveis, inconcebíveis, exigem e clamam pelo deus.)

Quem és? perguntamo-nos perante aquele que é, que revela e interpela o que somos e não sabemos, violentamente expostos, nus, tão nus como perante a morte, a nossa própria. O momento em que não há escapatória nem adiamento possíveis. O momento cego da carne viva e verdadeira, perante a morte todo o resto é brincadeira, balelas de esperança e ilusão, perante Deus nada somos nem sabemos disso que afinal somos.

Aí, não há propriedade alguma que valha e seja nossa, aí não há sabedoria nem instinto, não há cultura, ciência, arte, religião, natureza, nada, nada de nada de nada, e eu vo-lo tinha dito: sem obras, sem língua, sem palavra, sem espírito, nada.

Nada, senão um belo Pesa-Nervos.

segunda-feira, novembro 10, 2008

Luz

Já me perdi, disse ele de repente. Já não percebo nada disto. E no entanto, tudo lhe corria bem, como se costuma dizer. Nada mudara.

segunda-feira, novembro 03, 2008

Sacrum facere 2

Se há transubstanciação ou o que se quiser entender das espécies eucarísticas, a isto corresponde um apelo de Deus, e simultaneamente, um oferecer-se do próprio Deus na força e luz suficiente para responder-se a esse apelo.

O apelo consiste, como se sabe, numa transubstanciação existencial, na qual a nossa carne se torne acto do próprio Deus, se santifique. A nossa carne, isto é: a nossa vida quotidiana, as nossas pulsões e ideias, as nossas adesões e relações; o nosso sangue, o nosso esperma, o nosso estômago, a nossa pele, os nossos nervos; a nossa alma, os nossos mundos, as nossas afecções; os nossos sentimentos e desejos; as nossas actividades e contemplações, as nossas presenças e ausências, os nossos medos e esperanças.

Esse é o sentido místico da comunhão, esse o epicentro sacramental.

A sacramentalidade é duma exigência e violência sobrenatural, que não é líquido constituir chamamento para todos os homens e mulheres. Isso é claro na religiosidade em geral, mesmo quando a sobrenaturalidade em jogo não é semelhante à noção de sacramentalidade; daí o mediador entre os vivos e os mortos, entre o céu e a terra, entre os deuses e os mortais, constituir uma casta à parte.

Para além das questões socio-políticas e religiosas que a História das igrejas e sociedades indica, podemos dizer que o cristianismo é um soco na mesa da religiosidade, no sentido em que o véu do templo é rasgado, e que o sacerdócio humano enquanto mediador e orientador é anulado e superado na páscoa jesuânica.

Mas não é a exigência religiosa que é anulada, e sim a sua universalidade que é afirmada – todos renováveis à imagem de Deus, e não apenas uma casta. Todos renováveis pelo próprio Deus, que invadiu a nossa própria carne.

Ou seja, não significa que a violência a exercer sobre a espontaneidade natural e cultural – que toda a religiosidade configura – não seja um requesito do cristianismo. Bem pelo contrário, significa que essa tensão transfiguradora é requerida e oferecida, na sua brutal exigência, a todo e qualquer um.

Um sacerdócio universal.

Não se trata de banalizar a sacralidade mas de sacralizar a banalidade; não se trata de humanizar o cristianismo, mas de cristianizar a humanidade em cada um de nós; de a divinizar.