segunda-feira, novembro 03, 2008

Sacrum facere 2

Se há transubstanciação ou o que se quiser entender das espécies eucarísticas, a isto corresponde um apelo de Deus, e simultaneamente, um oferecer-se do próprio Deus na força e luz suficiente para responder-se a esse apelo.

O apelo consiste, como se sabe, numa transubstanciação existencial, na qual a nossa carne se torne acto do próprio Deus, se santifique. A nossa carne, isto é: a nossa vida quotidiana, as nossas pulsões e ideias, as nossas adesões e relações; o nosso sangue, o nosso esperma, o nosso estômago, a nossa pele, os nossos nervos; a nossa alma, os nossos mundos, as nossas afecções; os nossos sentimentos e desejos; as nossas actividades e contemplações, as nossas presenças e ausências, os nossos medos e esperanças.

Esse é o sentido místico da comunhão, esse o epicentro sacramental.

A sacramentalidade é duma exigência e violência sobrenatural, que não é líquido constituir chamamento para todos os homens e mulheres. Isso é claro na religiosidade em geral, mesmo quando a sobrenaturalidade em jogo não é semelhante à noção de sacramentalidade; daí o mediador entre os vivos e os mortos, entre o céu e a terra, entre os deuses e os mortais, constituir uma casta à parte.

Para além das questões socio-políticas e religiosas que a História das igrejas e sociedades indica, podemos dizer que o cristianismo é um soco na mesa da religiosidade, no sentido em que o véu do templo é rasgado, e que o sacerdócio humano enquanto mediador e orientador é anulado e superado na páscoa jesuânica.

Mas não é a exigência religiosa que é anulada, e sim a sua universalidade que é afirmada – todos renováveis à imagem de Deus, e não apenas uma casta. Todos renováveis pelo próprio Deus, que invadiu a nossa própria carne.

Ou seja, não significa que a violência a exercer sobre a espontaneidade natural e cultural – que toda a religiosidade configura – não seja um requesito do cristianismo. Bem pelo contrário, significa que essa tensão transfiguradora é requerida e oferecida, na sua brutal exigência, a todo e qualquer um.

Um sacerdócio universal.

Não se trata de banalizar a sacralidade mas de sacralizar a banalidade; não se trata de humanizar o cristianismo, mas de cristianizar a humanidade em cada um de nós; de a divinizar.

27 Comments:

Blogger BLUESMILE said...

Belíssimo texto.

10:08 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

olá, bluesmile, bjocas :)

7:12 da tarde  
Blogger Ana Beatriz Frusca said...

Este comentário foi removido pelo autor.

11:05 da tarde  
Blogger Ana Beatriz Frusca said...

Não há dúvida alguma que tu se coloca muito bem. Gosto da tua visão, se todos cristãos que já conversaram comigo tivessem essa tua desenvoltura, eu não seria tão céptica.

Beijinho.

PS: Se tiveres tempo pase lá no Bar. Gostaria de ler tua visão sobre esse texto do Casimiro:
http://renascimentolusitano.blogspot.com/2008/11/anjo-daguarda.html

11:09 da tarde  
Blogger Gotik Raal said...

Vítor,

Vai ser um prazer genuíno seguir de perto este teu caminho.

O véu rasgado do templo, é uma boa imagem para descobrir no nosso âmago, também; no ruído algo ensurdecedor que vamos promovendo de inconsciência para retardar ad eternum a resposta ao apelo, a esse pulsar de fundo que habita em nós. Paradoxalmente a razão invocada de inconsciência apresenta-se como uma protecção do sêr mortal quando na verdade, a melhor protecção será porventura rasgar esse véu e comungar da sacralidade.

Mas urge acreditar.

Abraço, Vítor
Gotik Raal

12:16 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Bem, isso não sei, biazinha... O que sei é que nenhum Padre ou Doutor da Igreja negaria qualquer dos enunciados deste texto. Quanto muito apor-lhe-ia uma nota ;)

E o cepticismo é uma das dinâmicas da saúde existencial (ou santidade); a fé nunca se opôs à dúvida, bem pelo contrário, esta é um dos seus elementos activos, na forma de anseio e busca, e por vezes até- de raiva e desespero.

bjocas

PS: Estou sem vagar para comentar o magnífico texto do Dom Casimiro.

10:53 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Sim. E urge aquereditar ;)

Um abraço, Gotik. O prazer é mútuo.

10:57 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

PS: o véu do templo é rasgado pelo próprio deus; e o humano, tende a constituir-se véu, sempre; embora também tenda a constituir-se imagem, transparência; imagem velada pois; deus: puro acto em tudo; etc ;)

12:09 da tarde  
Blogger JPC said...

«E o cepticismo é uma das dinâmicas da saúde existencial (ou santidade); a fé nunca se opôs à dúvida, bem pelo contrário, esta é um dos seus elementos activos, na forma de anseio e busca, e por vezes até- de raiva e desespero.»

Se você é céptico em relação ao Deus da Bíblia não é cristão, é no mínimo agnóstico. A verdadeira fé é verdade. A dúvida é o que existe antes da fé, antes da verdade religiosa se dar a conhecer. No que diz respeito à esfera religiosa da vida, é falso que o cepticismo seja uma atitude "saudável". Os santos são-no porque superaram a dúvida.
Em matéria doutrinal, o cepticismo também não é aconselhado nem estimulado.

4:11 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro/a J.

Vai assim, por coincidência interbloguística LOL:

"Deus absconditus
em memória de Karl Barth




Quando pensamos que sabemos, de Deus nos afastamos; quando calamos o que pensamos saber, não clamamos por Deus.

A religião é isto.

O que nos distancia de Deus (mais até do que a agnóstica despreocupação, seja ela autenticamente possível ou não) e o lugar onde se clama por Ele.
A ideia de que o acesso directo (ou até, nos casos mais graves de idolatria, o próprio Deus) se dá nos conteúdos objectivados de textos bíblicos, da tradição ou conciliares, da prática religiosa e suas regras - está a milhas da fé.

E está certo assim: a temporalidade - e a religiosidade, à morte pertence - assim condiciona; mas não esqueçamos que não é de Deus, mas nossa.

Os únicos dons directos de Deus são o ser, a fé e o amor - que pertencem à vida, e nesse sentido são ilimite doado.
A maioria dos enunciados doutrinais não respondem a nada quando tentam definitivamente responder. A esfinge boceja, pois ninguém a ela se apresenta, pretendendo ainda por cima tê-la superado, já passado por ela. Mas o crivo do enigma acabará sempre por constituir a interrogação final, depois de todas as afirmações – excepto uma, que aí, sim, contenha todas as outras.

O que não significa que incautamente nos passemos de doutrinas e dizeres: aquele que ama sabe que tem de organizar-se no pensamento e na acção para temporalizar o amor, buscá-lo e por ele ser descoberto; mas se se mantiver no amor, saberá também que toda a fixação em fechamento doutrinal corresponde ao assassínio do amor e à desvitalização do espírito.

Dito de outro modo: quando a verdade se retém no alfa, torna-se falsidade soçobrada no ômega.

Ou ainda, sobre tudo: sangue forte, eucarístico."

em:

http://trentonalingua.blogspot.com/2008/11/deus-absconditus.html

A certeza que não necessite de esperança e de abertura fideísta em Deus, não passa dum véu humano demasiado humano;)

Cepticismo cristão tem dois aspectos:

- não há fundamento visível para as verdades místicas (sentido do silêncio maior);

- não detemos o sentido total da vida e de Deus.

Saudações

1:12 da tarde  
Blogger JPC said...

«Quando pensamos que sabemos, de Deus nos afastamos; quando calamos o que pensamos saber, não clamamos por Deus.
A religião é isto.»

Para si, ou para quem tenha escrito isso. O resto são jogos de palavras, o cristianismo tem essa dimensão de mistério, mas acima de tudo contém verdades indiscutíveis. O Dogma é uma dimensão incontornável das religiões. Sobretudo nas de inspiração judaico-cristã. Você pode ter dúvidas, sim, em relação à sua fé pessoal, mas a ambição suprema do crente é ser inabalavelmente fiel à sua Verdade religiosa e doutrinal. Não saber, ou duvidar, é um desvio a essa fidelidade. O verdadeiro cristão, sabe e aceita os mandamentos e os valores morais da sua Igreja como verdadeiros e indiscutíveis. Reparei que tem link para o site de Leonardo Boff, mas um cristão, seja qual for a sua sensibilidade teológica ou grau de rebeldia em relação à instituição, clama a um Deus com certas e determinadas características, não a um Deus qualquer relativo à sensibilidade de cada um. Se não, saímos do domínio do religioso (estar em contacto com o divino, “religar”) e entramos no campo da “espiritualidade”, lato sensu, dos deuses pessoais e do individualismo new age.

«O que nos distancia de Deus (mais até do que a agnóstica despreocupação, seja ela autenticamente possível ou não) e o lugar onde se clama por Ele.»

É certo que haverá agnósticos simplesmente desinteressados, como haverá certamente crentes desinteressados, mas é falso que ser agnóstico seja sinónimo de “despreocupação”. E é autenticamente possível. Também é discutível que a religião seja algo que nos distancia de Deus. É onde clamamos por Ele e é onde nos deveríamos sentir mais próximos d’Ele.
«A ideia de que o acesso directo (ou até, nos casos mais graves de idolatria, o próprio Deus) se dá nos conteúdos objectivados de textos bíblicos, da tradição ou conciliares, da prática religiosa e suas regras - está a milhas da fé.
E está certo assim: a temporalidade - e a religiosidade, à morte pertence - assim condiciona; mas não esqueçamos que não é de Deus, mas nossa.»
Aceito, a fé é uma dimensão emocional, não é de conhecimento. Questiono-me, então, para que servem afinal os «conteúdos objectivados de textos bíblicos, da tradição ou conciliares, da prática religiosa e suas regras»? Para que serve Igreja?
A temporalidade é nossa? Que significa isso ao certo?

«Os únicos dons directos de Deus são o ser, a fé e o amor - que pertencem à vida, e nesse sentido são ilimite doado.
A maioria dos enunciados doutrinais não respondem a nada quando tentam definitivamente responder. A esfinge boceja, pois ninguém a ela se apresenta, pretendendo ainda por cima tê-la superado, já passado por ela. Mas o crivo do enigma acabará sempre por constituir a interrogação final, depois de todas as afirmações – excepto uma, que aí, sim, contenha todas as outras.
O que não significa que incautamente nos passemos de doutrinas e dizeres: aquele que ama sabe que tem de organizar-se no pensamento e na acção para temporalizar o amor, buscá-lo e por ele ser descoberto; mas se se mantiver no amor, saberá também que toda a fixação em fechamento doutrinal corresponde ao assassínio do amor e à desvitalização do espírito.»

O mesmo tom categórico já eu li, em sentido contrário, de muitos doutores da Igreja (penso na fé católica, que não sei sequer se é a sua). Há não muito tempo tínhamos a figura da infalibilidade papal. A Bíblia e os concílios pretendem organização mas são caminhos para a Verdade e esse caminho do crente tem desafios, um deles é o desafio da dúvida. Mas o ideal religioso é a superação da dúvida. As eucaristias, por exemplo, são celebrações de comunhão com Deus, com o Deus Verdadeiro, indescritível mas Verdadeiro. A noção de Verdade é central no discurso religioso, o cepticismo é desviante. Boff é um exemplo claro disso mesmo. A dimensão de mistério não o autoriza a duvidar do essencial: Acreditar. O ideal é a convicção. Mas há, claro, um problema mais abrangente e incontornável, o de tudo isto ser relativo. A sua ideia de religião e de Deus é simpática mas é a sua. E o seu discurso é contraditório em si mesmo. Você defende um cristianismo aberto à dúvida e ao cepticismo e fá-lo contrapondo uma série de verdades inquestionáveis, como esta: «Os únicos dons directos de Deus são o ser, a fé e o amor - que pertencem à vida, e nesse sentido são ilimite doado».

«A certeza que não necessite de esperança e de abertura fideísta em Deus, não passa dum véu humano demasiado humano;)
Cepticismo cristão tem dois aspectos:
- não há fundamento visível para as verdades místicas (sentido do silêncio maior);
- não detemos o sentido total da vida e de Deus.»

Humanos, demasiado humanos, sem dúvida. Não há fundamento, mas há aceitação. E não deixam de ser “verdades” místicas. Não se duvida da verdade; quando se acredita nessa verdade, bem entendido. Não detemos o sentido total da vida e de Deus, é certíssimo, mas em que medida é que isso nos leva a sermos cépticos? Quanto muito leva-nos a sermos curiosos. E para si é inquestionável que há um Deus. Feito à imagem das suas convicções e da sua personalidade, mas Há. E por todos os seus ensinamentos ficamos a saber que tem características precisas, para além de qualquer dúvida, não conhece o todo mas conhece a parte, ou partes. Repito, duvidar é ser agnóstico, não é ser cristão.

3:30 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Eu sou o escriba de tais alocuções; essa primeira frase é também um eco em vénia a Karl Barth e ao seu "Comentário à carta aos romanos".

" O Dogma é uma dimensão incontornável das religiões."

Há religiosidade sem dogma. Seja como for, os dogmas cristãos (consubstancialidade do Pai e do Filho, presença real na eucaristia, criação divina da totalidade, etc) não são passíveis de conteúdo fechado: o seu significado continua a interpelar o nosso entendimento concílio após concílio. Crer não é apenas saber, é também configurar-se a um mistério que nos move, Deus ele próprio a bem dizer. Ao tornar-se estritamente saber, conteúdos determináveis e fixáveis, inverte-se no seu contrário: imobilidade existencial que nega ou elide a acção da graça e o movimento de conversão.

Duvidar faz parte do caminho de re-ligação – purifica e fortalece. A não ser para quem se pretenda já-ligado.

" Reparei que tem link para o site de Leonardo Boff (…)
Também tenho para o Opus dei, para sites ateus e para um luciferário.
E então?

" Questiono-me, então, para que servem afinal os «conteúdos objectivados de textos bíblicos, da tradição ou conciliares, da prática religiosa e suas regras»? Para que serve Igreja?
A temporalidade é nossa? Que significa isso ao certo?"

Servem para:
" aquele que ama sabe que tem de organizar-se no pensamento e na acção para temporalizar o amor, buscá-lo e por ele ser descoberto"

" A noção de Verdade é central no discurso religioso, o cepticismo é desviante."
Claro que sim. A noção de que detenho a Verdade é que não; no sentido cristão, é a verdade que me detém (ontologicamente doando-me o ser e seus modos, epistemologicamente conformando a mente a esses modos, cristologicamente movendo em mim a graça divina em que, aí sim, é agido o sentido secreto e mistérico do todo). Mas evidentemente que o cepticismo cristão não é o dos Académicos com que pelejava Agostinho… O cepticismo nunca pode ser total, pois teria de fundar-se na certeza da impossibilidade total de conhecimento. O cepticismo são é o cepticismo crítico; no sentido cristão, quando suspeita e afere de si próprio e de todas as possibilidades idolatras.

Mas não se agarre tanto às palavras; tente apreender o significado e contextos discursivos. Pôr uma peça de xadrez num baralho de cartas não torna o xadrez absurdo.

4:00 da tarde  
Blogger JPC said...

«Há religiosidade sem dogma. Seja como for, os dogmas cristãos (consubstancialidade do Pai e do Filho, presença real na eucaristia, criação divina da totalidade, etc) não são passíveis de conteúdo fechado: o seu significado continua a interpelar o nosso entendimento concílio após concílio. Crer não é apenas saber, é também configurar-se a um mistério que nos move, Deus ele próprio a bem dizer. Ao tornar-se estritamente saber, conteúdos determináveis e fixáveis, inverte-se no seu contrário: imobilidade existencial que nega ou elide a acção da graça e o movimento de conversão.»

Sim, apesar de ser discutível, concordo que haverá religiosidade sem dogma. Nestes casos prefere-se o recurso ao termo espiritualidade, acaba por ser mais genérico e não compromete ninguém. Caímos no relativismo espiritual característico das novas formas liberais de religiosidade, de que o “movimento” new age é expressão contemporânea curiosa. A laicização e o individualismo (que não é sinonimo de egoísmo) crescentes fomentam essa vivência religiosa, do Deus relativo, subjectivo e escrutinável. E isso não é necessariamente mau. Mas, mantenho, não há religiões sem dogma.

Os dogmas cristãos são isso mesmo, dogmas: verdades não discutíveis, reveladas por Deus, absolutas e eternas. Pelo menos, é certo, até ao próximo concílio… Mas seja como for, o facto de um dogma nos interpelar não significa que seja questionável. A Igreja Católica, por exemplo, tem dezenas de dogmas inquestionáveis que nem os concílios abalam. E além disso considera-se uma confissão infalível, porque como está escrito em Timóteo é “a Igreja de Deus vivo, coluna e firmamento da verdade.”. A Imaculada Conceição de Maria pode fazer-nos reflectir, mas não é discutível enquanto verdade fundadora da fé católica. Eis um conteúdo fechado. Negar ou duvidar de tal verdade é passível, quiçá de excomunhão. O mesmo para a existência de Deus. Pode ser misterioso, mas não é questionável. Por algum motivo, por outro lado, se fala tanto em “fé verdadeira”. Onde há verdade não há dúvida. O facto da natureza de Deus ser incompreensível para os homens, não os deve levar a serem cépticos. Discutem-se eventualmente significados ou simbolismos, e uma Igreja para se manter Viva precisa de o fazer de tempos a tempos para se adaptar à marcha da História, mas não se discute a essência. As verdades proclamadas por Moisés, Jesus ou John Smith, seja qual for o profeta, são aceites como tal: Verdades. Verdades que se traduzem em crenças. Crença é convicção, convicção é certeza, e a certeza não admite dúvida. Dúvida é fraqueza. Quem tem dúvidas confessa-se, arrepende-se e é absolvido mediante penitência. É pelo menos assim que milhões de pessoas vivem a sua religiosidade, por isso se chamam “fiéis”. São fiéis a verdades e mandamentos.

A sua ideia de religião, aliás, a sua ideia de cristianismo, é louvável, mas o verdadeiro crente, o genuíno e comum fiel de uma qualquer doutrina religiosa, não pode ter o melhor dos dois mundos: duvidar e crer ao mesmo tempo. Ou duvida, ou crê. Quando duvida, algo está mal e está na hora do confessionário. Já nem falo nos milhões de cristãos (todos eles igualmente “verdadeiros”) literalistas, para quem a Bíblia não tem nada de metafórico e muito menos de duvidoso.

Você tem dúvidas em relação à ressurreição de Jesus Cristo? É céptico em relação à sua ascendência divina?

Em que medida, por exemplo, é que o princípio segundo o qual «Em Deus há três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo; e cada uma delas possui a essência divina que é numericamente a mesma» (exemplo claro de conteúdo determinado e fixo ou saber estrito) representa a “imobilidade existencial que nega ou elide a acção da graça e o movimento de conversão”?

A propósito de verdades indisputáveis, remeto por exemplo para este documento orientador da Igreja Católica, produzido pela Congregação para a Doutrina da Fé, http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000806_dominus-iesus_po.html, de que deixo aqui apenas um excerto: «(...) Para fazer frente a essa mentalidade relativista, que se vai difundindo cada vez mais, há que reafirmar, antes de mais, o carácter definitivo e completo da revelação de Jesus Cristo. Deve, de facto, crer-se firmemente na afirmação de que no mistério de Jesus Cristo, Filho de Deus Encarnado, que é « o caminho, a verdade e a vida » (cf. Jo 14,6), dá-se a revelação da plenitude da verdade divina: « Ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o queira revelar » (Mt 11,27); « A Deus, ninguém jamais O viu. O próprio Filho Único, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer » (Jo 1,18); « É em Cristo que habita corporalmente toda a plenitude da divindade e n'Ele participais da sua plenitude » (Col 2,9). (...)». Onde há aqui espaço para dúvida?

«Também tenho para o Opus dei, para sites ateus e para um luciferário.
E então?»

Então nada, o cristianismo de Boff é simpático, mas não é uma perspectiva cristã dominante e é um exemplo claro de como o excesso de questionamento pode ter consequências fracturantes e penalizadoras. Além disso é um cristianismo mais simpático do que o da Opus Dei, sensibilidade eventualmente menos aberta à dúvida e ao cepticismo.

«" aquele que ama sabe que tem de organizar-se no pensamento e na acção para temporalizar o amor, buscá-lo e por ele ser descoberto"»

Esta linguagem redonda e abstracta, mística, é fascinante. E uma magnífica forma de rodear as questões, fingindo que ficam respondidas. Na experiência religiosa organizada, na Igreja, há Verdade e há verdades. Há regras, normas, princípios e dogmas aceites como verdadeiros e indubitáveis que permitem, precisamente, organizar pensamento e acção. Mas não só, permitem, se acatados sem desvios, acessar à salvação eterna.

«Claro que sim. A noção de que detenho a Verdade é que não; no sentido cristão, é a verdade que me detém (ontologicamente doando-me o ser e seus modos, epistemologicamente conformando a mente a esses modos, cristologicamente movendo em mim a graça divina em que, aí sim, é agido o sentido secreto e mistérico do todo). Mas evidentemente que o cepticismo cristão não é o dos Académicos com que pelejava Agostinho… O cepticismo nunca pode ser total, pois teria de fundar-se na certeza da impossibilidade total de conhecimento. O cepticismo são é o cepticismo crítico; no sentido cristão, quando suspeita e afere de si próprio e de todas as possibilidades idolatras.»

Os cristãos não detêm a verdade; são detidos por ela. Muito bem, no que me toca, vai dar ao mesmo. De uma forma ou de outra são prisioneiros da sua verdade e da infalibilidade da sua crença. Interessa-me mais realmente a sua conclusão de que o cepticismo cristão não pode ser total. Pois evidentemente que não e é esse o meu ponto desde o início. Nem comento a bizarra noção de que “cepticismo são (?) é cepticismo crítico” (há alguma forma de cepticismo que não o seja?...), mas retenho finalmente a noção de que para um cristão o cepticismo é limitado, não é sistemático nem abrangente (como o é o cepticismo científico, por exemplo). Porque para um cristão é até óbvio que há conhecimento verdadeiro, que há verdades fundamentais fora do alcance da dúvida. Quanto muito, percebi, um cristão pode suspeitar de si próprio (da sinceridade da sua fé por exemplo) ou das propostas religiosas concorrentes, mas o cepticismo do crente termina onde começa a doutrina da sua Igreja, ou a Verdade que o detém.

«Mas não se agarre tanto às palavras; tente apreender o significado e contextos discursivos. Pôr uma peça de xadrez num baralho de cartas não torna o xadrez absurdo.»

Está bem.

10:44 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

parece-me que estamos a bi-monologar LOL

a fé não é um dado adquirido, mas um combate contínuo, esse parece-me o ponto fulcral em que porventura divergimos no pensamento e na vivência.

e talvez aqui também diverjamos:

"mas o cepticismo do crente termina onde começa a doutrina da sua Igreja, ou a Verdade que o detém"

pois, embora tivesse de definir-se o que quer dizer com doutrina, também a actividade e expressão dos humanos na Igreja é para mim sumamente interrogável. é aliás por tal que é possível um papa pedir perdão pelos erros humanos da Igreja.

o resto, parece-me que se está a dirigir a um retrato-robot qualquer que não corresponde aos textos em jogo.

12:15 da tarde  
Blogger Ana Beatriz Frusca said...

Agrada-me ler um católico de mente aberta.
Aqui no Brasil sou fã do Frei Beto.

Beijos.

12:33 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Bem, mente fechada é uma contradição nos termos, uma mão que se lança para agarrar e tocar e apenas soqueia e destrói ;)

Conheço pessimamente o Frei Betto. Li dois ou três textos dele, penso que no jornal “Fraternizar” ou no blog “Jardim de luz”. Fiquei com a ideia dum ponto de vista muito atento à realidade do outro, ou melhor dito e simplesmente: à realidade.

Bjocas, biazinha

4:26 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

“é cepticismo crítico” (há alguma forma de cepticismo que não o seja?...)”

pequena ilustração historico-filosófica: o cepticismo dos já referidos Académicos, ou dum Cioran, não é crítico; não se trata duma interrogação e suspensão de juízo por indagação ou esclarecimento; trata-se sim de postular a impossibilidade de qualquer juízo apodígtico sobre seja o que for; um cepticismo crítico é mais à Tomás de Aquino, à Descartes ou à Kant.

5:04 da tarde  
Blogger JPC said...

Bi-monologuemos, pois então! Está interessante este bi-monólogo. Seja como for, as minhas interrogações ficam por responder. Aceito perfeitamente que a fé possa ser um combate contínuo, mesmo sabendo que nem todo o crente assim a entende e vive, ou pelo menos com a mesma intensidade combativa. Há uns mais dogmáticos que outros. Para muita gente a fé é, efectivamente, um dado adquirido e nem todos os católicos têm a sua "mente aberta" elogiada pela Biazinha. E folgo realmente em ir conhecendo crentes que não se acomodam e questionam. Assim todos os fiéis vivessem a sua religião, o mundo seria certamente um sítio mais simpático para todos. Parabéns pela abertura. Mas a verdade é que é muito raro um Papa pedir perdão pelos erros (humanos, naturalmente) da sua Igreja. E é muito mais raro ainda ver isso noutras religiões.
As minhas opiniões não dizem respeito a putativos retratos-robot, trata-se da minha experiência com crentes e do conhecimento que vou adquirindo em relação à história das religiões e às diferentes teologias.
Mas compreendo, claro, que estamos a falar eventualmente de diferentes campos de dúvida. Paz e Saúde!

11:50 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

"As minhas opiniões não dizem respeito a putativos retratos-robot, trata-se da minha experiência com crentes e do conhecimento que vou adquirindo em relação à história das religiões e às diferentes teologias."

OK
O problema do retrato prévio, putativo ou não, é que se eu tenho diferente experiência prática e teológica - ou até, diferente modo de a compreender e viver - torna-se difícil apreender quais ao certo (enfim, na medida do possível) as suas interrogações.

As dificuldades de assumirmos - até pessoalmente - os nossos erros sem nos auto-justificarmos, penso que é por demais conhecida de qualquer humano LOL; a Igreja sofre de todos os males humanos, ainda para mais intensificados pela religiosidade (tentação de sermos os representantes oficiosos de Deus, directamente; em linguagem teológica: idolatria da mediação humana configurada no magistério, por exemplo).

A dúvida, pois. Mas relativamente aos mistérios cristãos, isto é, aos dogmas, passa-se um pouco o que se passa com a realidade natural: nós podemos assumir a certeza que há algo, nós próprios, a vida, algo lá fora; mas o "como" de tal é uma perpétua procura e confrontação entre já-adquiridos e por-adquirires. Para lhe dar um exemplo, a ressurreição de Cristo é algo de não completamente definido nos seus modos, desde os textos evangélicos até hoje para qualquer crente.

Paz e santidade!

1:20 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

PS: sim, tem sido interessante o bi-monólogo ;)

1:21 da tarde  
Blogger JPC said...

«O problema do retrato prévio, putativo ou não, é que se eu tenho diferente experiência prática e teológica - ou até, diferente modo de a compreender e viver - torna-se difícil apreender quais ao certo (enfim, na medida do possível) as suas interrogações.»

Admito perfeitamente que possa ser insuficiência intelectual da minha parte, mas não percebo essa lógica. As minhas interrogações, independentemente das nossas diferentes mundivisões, são claras e, creio, a minha linguagem não é dúbia. Tanto assim é que, aos poucos, o Victor lá vai indo ao seu encontro.

«As dificuldades de assumirmos - até pessoalmente - os nossos erros sem nos auto-justificarmos, penso que é por demais conhecida de qualquer humano LOL; a Igreja sofre de todos os males humanos, ainda para mais intensificados pela religiosidade (tentação de sermos os representantes oficiosos de Deus, directamente; em linguagem teológica: idolatria da mediação humana configurada no magistério, por exemplo).»

Essa sua opinião pessoal é louvável, mais uma vez, mas não é, de todo, o entendimento oficial da Igreja (estou a partir do princípio quiçá errado, que estamos a falar da Igreja Apostólica Católica Romana em particular) e da generalidade dos seus fiéis. O dogma da infalibilidade papal, por exemplo, pode ser controverso, inclusive para certos sectores da própria Igreja, mas é incontornável: «O Romano Pontífice, quando fala "ex cathedra", isto é, quando no exercício de seu ofício de pastor e mestre de todos os cristãos, em virtude de sua suprema autoridade apostólica, define uma doutrina de fé ou costumes que deve ser sustentada por toda a Igreja, possui, pela assistência divina que lhe foi prometida no bem-aventurado Pedro, aquela infalibilidade da qual o divino Redentor quis que gozasse a sua Igreja na definição da doutrina de fé e costumes. Por isto, ditas definições do Romano Pontífice são em si mesmas, e não pelo consentimento da Igreja, irreformáveis». É disto que eu estou a “monologar”.

E disto: http://www.catholicnewsagency.com/new.php?n=14444

«A dúvida, pois. Mas relativamente aos mistérios cristãos, isto é, aos dogmas, passa-se um pouco o que se passa com a realidade natural: nós podemos assumir a certeza que há algo, nós próprios, a vida, algo lá fora; mas o "como" de tal é uma perpétua procura e confrontação entre já-adquiridos e por-adquirires. Para lhe dar um exemplo, a ressurreição de Cristo é algo de não completamente definido nos seus modos, desde os textos evangélicos até hoje para qualquer crente.»

Evidentemente. Digo eu e diz você. Quanto à ressurreição, não é algo “completamente definido” no modo, mas é-o na sua essência. Um Católico pode até ter dúvidas em relação ao como, mas não tem qualquer dúvida em relação à factualidade do acontecimento e aos seus porquês. Porque o fundamento de uma fé ou de uma crença é a adesão a uma verdade codificada, não é uma experiência de cepticismo. Nem, muito menos, o facto de não conseguirmos explicar os mistérios leva automaticamente ao pensamento crítico. As religiões não são disciplinas científicas, onde, aqui sim, uma postura de dúvida e de cepticismo sistemático são essenciais. As religiões reclamam aceitação incondicional a uma certeza, que só não é imutável porque as sociedades teimam em evoluir e a mudar à sua volta, obrigando a uma adaptação e reanálise constante e, amiúde, incómoda.

Mas que acha o Victor acerca da opinião do Cardeal Biffi?

4:42 da tarde  
Blogger JPC said...

Perdão, Igreja Católica Apostólica Romana.

6:17 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

"As minhas interrogações, independentemente das nossas diferentes mundivisões, são claras e, creio, a minha linguagem não é dúbia."

Não, não é dúbia; os contextos e modos de viver é que podem trazer outros sentidos, e isto de ambas as partes.

Relativamente às definições Ex Cathedra, em que houve dois pronunciamentos mistéricos acerca de Maria; aqui, aplica-se o mesmo que à ressurreição. Ou vai-me dizer que a Imaculada Concepção e a Ascensão da Virgem são conteúdos determináveis como o teorema de Pitágoras ou "está a chover lá fora"?

Quanto à "generalidade dos fiéis", meu caro, conheço de tudo um pouco, dos serviços paroquiais a retiros, de conferências a encontros, etc Garanto-lhe que a minha experiência não mostra nada assim tão a preto e branco. Seja como fôr, aceito essa categoria jornalística (isto é, postule-se sem confirmação que a maioria dos fiéis católicos não duvidam nem combatem com o anjo): nesse caso, eu teria de dizer que o meu caso é diferente. Repare, eu sinto-me instigado a aceitar e defender o que me parece verdadeiro e acontece. Aristóteles também não se tornou cristão sob o reconhecimento de Tomás de Aquino, mas este sabia que a unicidade da verdade torna dever cristão acarinhar e aprofundar esta, venha donde pareça vir.

"Quanto à ressurreição, não é algo “completamente definido” no modo, mas é-o na sua essência."
Precisamente.

Mas sabe, eu essa coisa de virem julgamentos de fora medir a minha catolicidade, enfim... Talvez lhe vá parecer estranho, mas o tribunal da minha conformidade a todos os itens de Denzinger ou ao Direito Canónico é algo que poderá ter piada, e até edificação fazer; mas para tal, são precisos outros juízos um pouco mais atentos e teológicos; enfim.


E qual o assunto do Bififi quer que eu comente. Penso que relativamente aos mistérios, ao essencial, há imutabilidade de princípios. Relativamente ao cultural e societal, não sei: o magistério já defendeu a escravatura, já condenou os agora co-participantes protestantes às penas do inferno, etc

O/a j. é um pouco generalista demais para eu poder responder com o mínimo de rigor e autenticidade. Teria quase de escrever uma Suma Teológica ;)

Mas porque se pré-ocupa assim com a minha canonicidade? LOL

6:53 da tarde  
Blogger JPC said...

Pelo simples e delicioso prazer de trocar ideias (ou "bimonologar", como você diz), meu caro, só por isso. Não é razão suficiente para si? Para que servem os blogs afinal? :)
Entretanto já cá venho monologar a propósito do resto. A sua linguagem é um pouco misteriosa, por isso obriga a leitura mais cuidada.
Mas desde já adianto que longe de mim julgar o que quer que seja da sua vida (medir a sua catolicidade?! Nem tal coisa me interessa...), e que nunca lhe disse que um fiel católico não tem dúvidas. Se não for fundamentalista, claro que duvida e é saudável que o faça. Até certo ponto, pelo menos, na óptica da sua Igreja. E é esse ponto que eu estou, enfim, a tentar perceber. Simplesmente acho bizarra a noção de que a duvida é inerente à fé. E muito mais bizarra a noção de que esse pressuposto é extensível ao fenómeno religioso, em geral - às religiões. Acha que a fé islâmica, por exemplo, é assim tão aberta ao cepticismo?
Mas já cá volto.

9:25 da tarde  
Blogger JPC said...

«Relativamente às definições Ex Cathedra, em que houve dois pronunciamentos mistéricos acerca de Maria; aqui, aplica-se o mesmo que à ressurreição. Ou vai-me dizer que a Imaculada Concepção e a Ascensão da Virgem são conteúdos determináveis como o teorema de Pitágoras ou "está a chover lá fora"?»

Escrevo do conceito de infalibilidade papal e você responde com “pronunciamentos mistéricos acerca de Maria”… Ó meu caro Vitor, a Imaculada Conceição e a Ascenção da Virgem são, obviamente, conteúdos indetermináveis. Como o é, por exemplo, a própria existência do Deus judaico-cristão. Ou vai-me dizer que a Igreja já descobriu a fórmula matemática que O prova? Ou que o Observatório Astronómico do Vaticano o detectou sentado numa pedra na Lua? Evidentemente que não, são puras matérias de fé. Matérias de fé que não admitem, enfim, dúvida. Por isso se chamam dogmas, verdades inquestionáveis não obstante misteriosas (e como não?...). A Fé, segundo a entendo, mesmo que não a tenha, consubstancia uma convicção inabalável numa verdade religiosa. Um seguidor de uma religião pode, como já lhe referi, ter dúvidas íntimas e terríveis acerca da sinceridade ou da intensidade da sua fé (até porque, segundo o credo cristão, somos feitos à Sua imagem mas somos fracos e imperfeitos), mas o ideal religioso é a superação desse estado duvidoso. Ou não?

«Quanto à "generalidade dos fiéis", meu caro, conheço de tudo um pouco, dos serviços paroquiais a retiros, de conferências a encontros, etc Garanto-lhe que a minha experiência não mostra nada assim tão a preto e branco. Seja como fôr, aceito essa categoria jornalística (isto é, postule-se sem confirmação que a maioria dos fiéis católicos não duvidam nem combatem com o anjo): nesse caso, eu teria de dizer que o meu caso é diferente. Repare, eu sinto-me instigado a aceitar e defender o que me parece verdadeiro e acontece. Aristóteles também não se tornou cristão sob o reconhecimento de Tomás de Aquino, mas este sabia que a unicidade da verdade torna dever cristão acarinhar e aprofundar esta, venha donde pareça vir.»

Independentemente do que sei e do que conheço, que penso não ser assim tão pouco (quer dizer, é pouquíssimo, mas enfim, isso é outra conversa), visto já ter quase cabelos brancos (quase não, já me aparecem alguns!) e viver num país maioritariamente católico, mantenho esta conversa consigo porque raramente tenho oportunidade de dialogar (ou “bi-monologar”) de forma tão aberta e construtiva com um crente. Normalmente, ao fim de dois ou três argumentos, sou enxotado sem apelo nem agravo de forma bem pouco “católica”, às vezes até violenta. Muitos crentes (pronto, admito que não seja a generalidade) simplesmente não têm esta abertura para discutir a sua fé ou para debater os fundamentos da sua crença. Também não acredito em monocromatismos, mas a verdade é que a maioria dos que eu conheço não exprimem qualquer tipo de dúvida, transmitem certezas inabaláveis e indiscutíveis baseadas simples e acriticamente na autoridade da sua Igreja, do seu pároco, do seu Bispo, do Papa, etc. O que é um “verdadeiro crente” senão um que não tem dúvidas acerca da “fé verdadeira”? De que duvidam os crentes (católicos) afinal?

«E qual o assunto do Bififi quer que eu comente. Penso que relativamente aos mistérios, ao essencial, há imutabilidade de princípios. Relativamente ao cultural e societal, não sei: o magistério já defendeu a escravatura, já condenou os agora co-participantes protestantes às penas do inferno, etc»

Pois, precisamente, a verdade é uma batata, perdoe-se-me o vernáculo. Menos, como defende, no que respeita “ao essencial”, onde haverá “imutabilidade de princípios”. E, presumo eu, não haverá margem para dúvida – mesmo que não se entenda o “como”. Em relação ao cultural e ao societal, o cardeal Biffi, se bem entendi, tem menos dúvidas que o Vitor.

10:39 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

“Pelo simples e delicioso prazer de trocar ideias (ou "bimonologar", como você diz), meu caro, só por isso. Não é razão suficiente para si?”
Tanto que é que o bi-monólogo continua; mas como quase todos bi-monólogos, há nele uma tendência para o dia-logos;) o que produz perguntas directas ao interlocutor.

“Simplesmente acho bizarra a noção de que a duvida é inerente à fé.”
A fé é um movimento de anseio no limite (vide a noite escura em S. João da Cruz, todo o conceito tomista e etc de teologia negativa, o “se consegues senti-lo ou pensá-lo, não é Deus” de Agostinho, etc); dito em vernáculo: aquilo que se anseia transcende totalmente os nossos vasos de vida, sensibilidade, entendimento, etc A incarnação vem suplantar esse abismo, em puro acto amoroso do divino (isto é, ele toma a dianteira de se humanizar, configurar aos nossos vasos, sem que tal lhe retire a absoluta transcendência; daí o dogma da completude das duas naturezas (humana e divina) em Cristo. A fé é um anseio e contacto com o Deus vivo, não se esgota num saber seja de que ordem for. Os textos bíblicos são um relato magnífico dessa procura, cheia de quedas e traições, elevamentos e reconciliações; vivo, afinal, é um predicado essencial à fé, não bastam enunciados doutrinais cravados no superego LOL O que se opõe à dinâmica da fé é o pecado, o fechamento, a recusa perante o inesperado do Deus em nós, do Deus que vem e advém, varrendo e transformando todas as nossas dinâmicas e estruturas; a especulação e interpelação, a dúvida e o questionamento são um elemento essencial da fé, de Job a Karl Rahner, do coxo no rio Jordão ao diácono da paróquia.

“Acha que a fé islâmica, por exemplo, é assim tão aberta ao cepticismo?”
Sim, no sentido que tenho tentado estar a dar-lhe. De Averrois a Ibn Arabi e porventura com certeza mais uns milhões deles que desconheço. Pessoalmente, tive uma estadia de dois meses em Marrocos, pejada de inúmeras conversas e bi-monólogos com muçulmanos e outros, que confirmam esta noção antropológica do anseio e da busca como essenciais à natureza humana.

“Escrevo do conceito de infalibilidade papal e você responde com “pronunciamentos mistéricos acerca de Maria”…”
Simplesmente porque os pronunciamentos ex cathedra foram precisamente referentes ao mistério de Maria. Seja como for, a infalibilidade papal tem uma dependência intrínseca à colegialidade episcopal (não significa que o papa fale directamente o divino como um sumo sacerdote avataresco LOL)

“(…)mas o ideal religioso é a superação desse estado duvidoso. Ou não?”
Por ventura ;) No entanto, a inesgotabilidade de Deus, faz com que a visão beatífica ou a corporeidade gloriosa (que correspondem ao “face a face” com Deus) apenas possa ser pensada ou entrevista como um infinito movimento, e não um finalmente deter o Deus na mão como uma batata ou um conjunto de determinações acabadas.

“Em relação ao cultural e ao societal, o cardeal Biffi, se bem entendi, tem menos dúvidas que o Vitor.”
Bem, primeiro peço perdão ao nomeado por lhe ter chamado Bififi LOL É muito difícil conhecer as dúvidas do outro, as suas insónias e desesperos. São coisas que se dão mais a conhecer nas relações pessoais, de amizade ou de direcção espiritual etc, e não em posições públicas relatadas no glorioso espectáculo jornalístico ou na telenovela social de falarmos de terceiros que são isto e aquilo e aqueloutro… Posto isto, lembro-me agora do velho sábio e ironista Jean Guitton, que dizia ser o dever dos padres e bispos apresentarem-se com certezas, e a dos leigos duvidar honestamente, numa dialéctica que nos vai aproximando e aprofundando das e nas verdades cristãs ;) O meu ponto de vista e vida é um pouco como ambas (a dúvida e a certeza) entrelaçando-se em mim numa tensão crescente de cristificação. Uma beca à Pascal LOL (este riso é uma private joke para o amigo Blaise LOLOLOLOL)

Bom fim de semana, j.

11:37 da manhã  
Blogger JPC said...

Bom fim de semana! E obrigado pela paciência de me aturar!
Se não se importa, podemos continuar a nossa conversa? Como já deve ter percebido, não sou crente, mas gosto de perceber e, mais do que isso (ao contrário de muitos ateus ou agnósticos que conheço), não obstante o olhar crítico, tenho respeito e sincero interesse pelo mundo da religiosidade, tanto que me considero um estudioso das religiões, ainda que eventualmente fraco... E é realmente raro encontrar alguém como o Vitor, disposto a esclarecer. É óbvio que tenho sempre o recurso aos livros, aos autores cristãos, clássicos e contemporâneos, mas não há nada como o diálogo vivo com o outro. Agradeço-lhe a atenção e peço-lhe que releve alguma eventual descortesia da minha parte, afinal, estamos em sua "casa"...
Se estiver disposto a prosseguir o diálogo, voltarei então quando tiver tempo.
Paz e Saúde!

3:07 da tarde  

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