segunda-feira, maio 14, 2007

Se tu fosses és

Para tu

Se fosses na hora do dia, és o lugar onde a nuvem habita o solo e o horizonte embate no fundo dos olhos e do estômago. São os astros fenecidos que desafias com arrepiada alegria, e então o fruto brota no coração e há flores que ninguém plantou e que só segredos móveis, inagarráveis, sabem humedecer e alimentar.

Se fosses pedra, és o seixo que rola na praia, moldado pelas vagas e pelas mãos de vagamundos indecisos. Pois tu és a árvore em cuja sombra se acolhe o profeta fugitivo, és um animal e serias baleia, leviatã, ventre de mulher. É nessa palavra sem verbo que me tocas sempre que me sinto, em tempo algum e lugar todo. És o livro que eu não li e que me escreve, és o som do meu silêncio. Ouve-se a tua distância na voz das sereias e no sopro dos anjos, és a flauta que pã tenta tocar desde o início da criação, não há som que não te pertença.

E por vezes faz sol e por outras chove, há dias em que se come e outros em que se jejua. A sombra dos mortos costuma visitar-nos ao crepúsculo, como se quisera confirmar que ainda cá estamos, e que os abraçamos com a nossa própria morte. Há um odor almiscarado no ar que confirma todas as partes do nosso corpo, doente e vivo e que pensamos conhecer. Vestimo-nos de sonhos e de conceitos, o nosso sentimento espontâneo é a raiva que nasce do medo, e a saudade de algo que a própria raiva impede de conhecer, desde que nascemos, cheios de ar e sufoco, solidão e comunhão, força e desgraça. E no entanto o nosso rosto sorri e soçobra de encantamento perante a mínima beleza sussurrada, o mínimo indício de frase verdadeira.

E tu chegas sempre fora de todos os elementos, a tocar jazz com os instrumentos da utilidade, rock’ n’ rollas com as funções todas que pensamos prover ao mundo com as nossas invenções. Se fosses cor, o arco-íris não tem fim nem pote, e no entanto nós saímos todas as manhãs, com um sabor acre na boca com que pensamos lavar a nossa própria vida, vestida de números e de cuidados, retenções, vinho e carne que não sabemos sangrar nem beber, nunca soubemos, por vezes o dizemos, ou o fazemos porventura sem atentar.

Se fosses coragem és esse medo todo, o filme projectado no ecrã da vida e em que nunca apareces e apenas o olhar do espectador que abandonou a sala te indica, no preciso lugar vazio que ele deixou a meio da sessão.

Mas agora é noite, calaram-se as cigarras e inverno algum chegou, és tu que danças nas minhas mãos, ou o dia que teima em crescer?

Porque mais um bocadinho, só mais um bocadinho, e todos nós já teríamos desistido, de ti e de nós, com a corda na garganta e o sonífero na banheira.

Mas agora é noite e tu fica, fica sim, só mais um bocadinho. O pai está quase a chegar, e eu pus mais uma acha na lareira.





Texto instigado por Nasacris, o justo . Dando juz à minha ascendência de corsário, as normas foram adaptadas à rota do meu navio. E, naturalmente, passo a flama para tu, quem fores e quiseres. Um abraço, Pedro.

18 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gostei muito.
Aqui nos canais de malaca esperamos sempre corsarios assim, ecos e coelhos chegam sempre nas tabuas que vao dando a costa que nos ajudam a dar continuidade a onda.
abracos e beijinhos muitos dos amigos para alem da taprobana.

3:43 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Muito bonito.
(malaca channel é demais!)

10:50 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Ó querida Malaca Channel, ó além Taprobana, ó insigne saudade :)

“Na noite de 20 de Dezembro de 1849 violentíssimo furacão açoutava Mompracem, ilha agreste, de sinistra fama, guarida de temíveis piratas, situada no Mar da Malásia, a algumas centenas de milhas das costas ocidentais da ilha de Bornéu.
Impelidas pelo vento terrível, corriam pelo céu, como escolhos deslocados, entrechocando-se, negras massas de nuvens, que de espaço a espaço deixavam cair sobre as sombrias matas da ilha furiosas bátegas de água. No mar, também agitado pelo vento, chocavam-se desordenadamente enormes vagas, confundindo os seus bramidso com os ribombos, ora breves e secos, ora intermináveis, dos trovões.
Nem nas cabanas alinhadas na curva da baía da ilha, ou nas fortificações que a defendiam, nem nos muitos barcos ancorados do outro lado da restinga, ou por entre o arvoredo, nem sequer na tumultuosa superfície do mar, se distinguia uma única luz. No entanto, quem viesse do Oriente e olhasse para o alto, teria visto no topo da rocha elevadíssima, cortada a pique sobre o mar, brilhar dois pontos luminosos: duas janelas intensamente ilumidadas.
Quem, apesar daquele temporal, velava na ilha e na noite?”

;)

Bjocas grandes.

11:01 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Oi, Débora bela, everyting an art e um abraço ;)

11:07 da manhã  
Blogger NaSacris said...

Então tu tinhas isto aqui, tão profundo, tão denso, tão intenso de ti, e não me dizias nada!
Bem adaptado. Mas se isto fosse um desafio vaticanista já te dizia que estavas ligeiramente fora da comunhão dos blogs que acederam ao desafio!!!
Abraço

9:52 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Oh Pedro, e eu pensando que a comunhão cristã constituía-se em abrirmo-nos ao ser do outro na verdade que mutuamente nos abre e transfigura, e afinal trata-se duma massificação prática e ideológica onde as singularidades se alienam e dissolvem, quando não fenecem… É por estas e por outras que Mompracem não se rende ao invasor ;)

“A nossa liberdade custou-nos muito cara para a tornarmos a perder, Inioko. Se nos prendessem outra vez, já não teríamos salvação. Vejamos se posso distinguir mais alguma coisa.”

A comunhão cristã trata de saber se o outro comunga de mim, ou se ambos comungamos de deus na diferença singular de cada qual, e aí nos encontramos sem nos anular nem manietar?

Realmente, é difícil distinguir. Porque há de haver um núcleo comum aferível. Se vos amardes como eu vos amei… E como raio ama o divino, que doa o ser no seu único acto?...

As normas vaticanistas, ou são condições e exercícios de abertura à transfiguração, ou resistência a esta. Como tudo em nós (mas é difícil distinguir;)

Abraço, ó justo

10:36 da manhã  
Blogger NaSacris said...

Quanta profundidade!
Diante desta reacção ao meu comentário só me resta o silêncio reconhecido e contemplativo.
Abraço!

2:36 da tarde  
Blogger Terpsichore Diotima (lusitana combatente) said...

Eu não conheço nada mais bonito do que a profundidade...

11:33 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Huuum… a profundidade. Que teima em vir à superfície. Nada há de mais profundo no ser humano, do que a sua pele, dizia o Valéry ;) Abraço, fada PS: É curiosa a relação entre a noção de profundidade, e a de elevação.

9:36 da manhã  
Blogger Terpsichore Diotima (lusitana combatente) said...

Sim, muito. E no entanto, quanto mais feitas uma só, mais passa, sempre, despercebida aos Homens.

1:01 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Boa corsário.
Um gesto pelo Darfur? Não custa nada!
Vá ao jovensemissao.blospot.com e confira no post sair do silêncio.
Informe, divulgue e sensibilize sff.
Não custa nada e pode fazer bem a muitos.
Abraço
leonel

3:51 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

[ao vitor, profundidade e elevação]

Já reparei que há quem fale de sentimentos elevados e pensamentos profundos. Ou então a elevação é para o cientista e a profundidade para o filósofo... é curioso.

Coisas de homens, diz a parte de mim feminista e queer.

7:22 da tarde  
Blogger Terpsichore Diotima (lusitana combatente) said...

As árvorés, cada semente, cada planta, cada flor. O esforço da ''criatura'', é na profundidade, procurar o alimento das raízes.

11:44 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Quanto mais em mim caio, maior é a vertigem.

2:55 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Boa missionário.

(Mas com enfins.)

Está linkado, logo no início. Teve de ficar em segundo, para que se comece na capela, e se recomece nos infindos céus ;)

Avisem-me quando a conta e o apelo servirem para outros fins.

Um abraço

2:57 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Coisas de homens e de mulheres, de fadas e gnomos, de pedras e de anjos, e até de... diz a parte de mim feminista e queer ;)

Há que abrir os olhos que se fecham no masculino, sem arrancá-los nem cegá-los, diz o todo de mim.

3:00 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

As árvores, sim.

3:01 da tarde  
Blogger maria said...

belíssimo...

3:50 da tarde  

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