Se tu fosses és
Para tu
Se fosses na hora do dia, és o lugar onde a nuvem habita o solo e o horizonte embate no fundo dos olhos e do estômago. São os astros fenecidos que desafias com arrepiada alegria, e então o fruto brota no coração e há flores que ninguém plantou e que só segredos móveis, inagarráveis, sabem humedecer e alimentar.
Se fosses pedra, és o seixo que rola na praia, moldado pelas vagas e pelas mãos de vagamundos indecisos. Pois tu és a árvore em cuja sombra se acolhe o profeta fugitivo, és um animal e serias baleia, leviatã, ventre de mulher. É nessa palavra sem verbo que me tocas sempre que me sinto, em tempo algum e lugar todo. És o livro que eu não li e que me escreve, és o som do meu silêncio. Ouve-se a tua distância na voz das sereias e no sopro dos anjos, és a flauta que pã tenta tocar desde o início da criação, não há som que não te pertença.
E por vezes faz sol e por outras chove, há dias em que se come e outros em que se jejua. A sombra dos mortos costuma visitar-nos ao crepúsculo, como se quisera confirmar que ainda cá estamos, e que os abraçamos com a nossa própria morte. Há um odor almiscarado no ar que confirma todas as partes do nosso corpo, doente e vivo e que pensamos conhecer. Vestimo-nos de sonhos e de conceitos, o nosso sentimento espontâneo é a raiva que nasce do medo, e a saudade de algo que a própria raiva impede de conhecer, desde que nascemos, cheios de ar e sufoco, solidão e comunhão, força e desgraça. E no entanto o nosso rosto sorri e soçobra de encantamento perante a mínima beleza sussurrada, o mínimo indício de frase verdadeira.
E tu chegas sempre fora de todos os elementos, a tocar jazz com os instrumentos da utilidade, rock’ n’ rollas com as funções todas que pensamos prover ao mundo com as nossas invenções. Se fosses cor, o arco-íris não tem fim nem pote, e no entanto nós saímos todas as manhãs, com um sabor acre na boca com que pensamos lavar a nossa própria vida, vestida de números e de cuidados, retenções, vinho e carne que não sabemos sangrar nem beber, nunca soubemos, por vezes o dizemos, ou o fazemos porventura sem atentar.
Se fosses coragem és esse medo todo, o filme projectado no ecrã da vida e em que nunca apareces e apenas o olhar do espectador que abandonou a sala te indica, no preciso lugar vazio que ele deixou a meio da sessão.
Mas agora é noite, calaram-se as cigarras e inverno algum chegou, és tu que danças nas minhas mãos, ou o dia que teima em crescer?
Porque mais um bocadinho, só mais um bocadinho, e todos nós já teríamos desistido, de ti e de nós, com a corda na garganta e o sonífero na banheira.
Mas agora é noite e tu fica, fica sim, só mais um bocadinho. O pai está quase a chegar, e eu pus mais uma acha na lareira.
Texto instigado por Nasacris, o justo . Dando juz à minha ascendência de corsário, as normas foram adaptadas à rota do meu navio. E, naturalmente, passo a flama para tu, quem fores e quiseres. Um abraço, Pedro.
18 Comments:
Gostei muito.
Aqui nos canais de malaca esperamos sempre corsarios assim, ecos e coelhos chegam sempre nas tabuas que vao dando a costa que nos ajudam a dar continuidade a onda.
abracos e beijinhos muitos dos amigos para alem da taprobana.
Muito bonito.
(malaca channel é demais!)
Ó querida Malaca Channel, ó além Taprobana, ó insigne saudade :)
“Na noite de 20 de Dezembro de 1849 violentíssimo furacão açoutava Mompracem, ilha agreste, de sinistra fama, guarida de temíveis piratas, situada no Mar da Malásia, a algumas centenas de milhas das costas ocidentais da ilha de Bornéu.
Impelidas pelo vento terrível, corriam pelo céu, como escolhos deslocados, entrechocando-se, negras massas de nuvens, que de espaço a espaço deixavam cair sobre as sombrias matas da ilha furiosas bátegas de água. No mar, também agitado pelo vento, chocavam-se desordenadamente enormes vagas, confundindo os seus bramidso com os ribombos, ora breves e secos, ora intermináveis, dos trovões.
Nem nas cabanas alinhadas na curva da baía da ilha, ou nas fortificações que a defendiam, nem nos muitos barcos ancorados do outro lado da restinga, ou por entre o arvoredo, nem sequer na tumultuosa superfície do mar, se distinguia uma única luz. No entanto, quem viesse do Oriente e olhasse para o alto, teria visto no topo da rocha elevadíssima, cortada a pique sobre o mar, brilhar dois pontos luminosos: duas janelas intensamente ilumidadas.
Quem, apesar daquele temporal, velava na ilha e na noite?”
;)
Bjocas grandes.
Oi, Débora bela, everyting an art e um abraço ;)
Então tu tinhas isto aqui, tão profundo, tão denso, tão intenso de ti, e não me dizias nada!
Bem adaptado. Mas se isto fosse um desafio vaticanista já te dizia que estavas ligeiramente fora da comunhão dos blogs que acederam ao desafio!!!
Abraço
Oh Pedro, e eu pensando que a comunhão cristã constituía-se em abrirmo-nos ao ser do outro na verdade que mutuamente nos abre e transfigura, e afinal trata-se duma massificação prática e ideológica onde as singularidades se alienam e dissolvem, quando não fenecem… É por estas e por outras que Mompracem não se rende ao invasor ;)
“A nossa liberdade custou-nos muito cara para a tornarmos a perder, Inioko. Se nos prendessem outra vez, já não teríamos salvação. Vejamos se posso distinguir mais alguma coisa.”
A comunhão cristã trata de saber se o outro comunga de mim, ou se ambos comungamos de deus na diferença singular de cada qual, e aí nos encontramos sem nos anular nem manietar?
Realmente, é difícil distinguir. Porque há de haver um núcleo comum aferível. Se vos amardes como eu vos amei… E como raio ama o divino, que doa o ser no seu único acto?...
As normas vaticanistas, ou são condições e exercícios de abertura à transfiguração, ou resistência a esta. Como tudo em nós (mas é difícil distinguir;)
Abraço, ó justo
Quanta profundidade!
Diante desta reacção ao meu comentário só me resta o silêncio reconhecido e contemplativo.
Abraço!
Eu não conheço nada mais bonito do que a profundidade...
Huuum… a profundidade. Que teima em vir à superfície. Nada há de mais profundo no ser humano, do que a sua pele, dizia o Valéry ;) Abraço, fada PS: É curiosa a relação entre a noção de profundidade, e a de elevação.
Sim, muito. E no entanto, quanto mais feitas uma só, mais passa, sempre, despercebida aos Homens.
Boa corsário.
Um gesto pelo Darfur? Não custa nada!
Vá ao jovensemissao.blospot.com e confira no post sair do silêncio.
Informe, divulgue e sensibilize sff.
Não custa nada e pode fazer bem a muitos.
Abraço
leonel
[ao vitor, profundidade e elevação]
Já reparei que há quem fale de sentimentos elevados e pensamentos profundos. Ou então a elevação é para o cientista e a profundidade para o filósofo... é curioso.
Coisas de homens, diz a parte de mim feminista e queer.
As árvorés, cada semente, cada planta, cada flor. O esforço da ''criatura'', é na profundidade, procurar o alimento das raízes.
Quanto mais em mim caio, maior é a vertigem.
Boa missionário.
(Mas com enfins.)
Está linkado, logo no início. Teve de ficar em segundo, para que se comece na capela, e se recomece nos infindos céus ;)
Avisem-me quando a conta e o apelo servirem para outros fins.
Um abraço
Coisas de homens e de mulheres, de fadas e gnomos, de pedras e de anjos, e até de... diz a parte de mim feminista e queer ;)
Há que abrir os olhos que se fecham no masculino, sem arrancá-los nem cegá-los, diz o todo de mim.
As árvores, sim.
belíssimo...
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