segunda-feira, maio 29, 2006

Pequena flor – à memória de Guy Debord

O que se passa é que não se sabe se o que primeiro se passa serão ideias. À partida, não parece. Está-se na vida como um tiro e queda, não temos bem a impressão de ter existido antes de vir à luz da terra, nascemos para aqui de súbito, mas esta impressão e suspeita de ser – é confusa e obscura. Não faz perguntas, e nesse silêncio interpela, porque é a única porra que não está lá, porque é a única coisa que é tudo – acompanha-nos sempre, quero dizer, o estar aqui, agora, o inacessível estar aqui e agora. Antes de lá chegarmos, já passámos – e ficamos com a representação do que passou no passe de nós passando. É passados de passar que ficamos, vivemos sempre – sur le passage de quelques personnes, à travers une assez courte unité de temps.

E como é evidente, não tenho bem a certeza se viveste ou to viveram, pobre eu, foi a passar de te passar, de te escorrer, que viveste agora pois, mesmo agora.

Onde vais, pequena escuridão?
Vou para a luz, ver a minha noite.

9 Comments:

Blogger Manuel said...

Bom dia Vitor,

Näo sei se percebi bem, este texto denso e pensabundo, porque o li assim, de passagem. E fiquei pensando se seria sobre isso mesmo, a passagem, o que fica e o que parte, o que se inscreve (cf. Gil...) e o que näo consta das nossas marcas. Sobre a Páscoa, afinal?

12:46 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

alguém é algo igualmente abundante. algo não, uma coisa em algo, alguém!

2:46 da tarde  
Blogger A Capela said...

Oh Vitor,

Não te passa pela cabeça as coisas que passaram pela minha ao ler-te. Sei que passei mais um belíssimo momento de leitura e que também passei o resto do dia a perguntar: "onde vais pequena escuridão?" Pois passei, :p mas não me passei não.

Bjinho*

11:23 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Olá, Manel.

E gemebundo! ;)

Pois o Zé Gicas… Não li “O medo de existir”…

Seja como for, a noção de que chegamos sempre atrasados ao que nos ocorre, e que esse acesso precisamente não se constitui sob a forma da ocorrência… é uma estrutura fundamental da existência, algo assim. É isso que permite as ilusões e inversões e mentiras em que todos (digo bem: todos) vivemos. Para alguns cristãos, nos quais me incluo, isso tem um nome: pecado original. Segue-se depois o crime original de Caim, que constitui o social. Nós percebemos isso quando deixamos de compreender algo na brutalidade das ocorrências (uma relação pessoal, o sentido duma actividade qualquer, o estado do mundo…) A existência é uma crise da qual nos distraímos com esperanças e ilusórias confirmações de sentido. A fé é outra questão. É depois disto, para lá de todos os desertos e abismos de nada.

Ou seja, mesmo as inscrições existenciais, não estão garantidas ;) Nem o seu sentido, nem a sua correspondência com a vida, nem a sua permanência.

Mas a base desta clássica apreensão da distância connosco próprios, com aquilo que decorre e onde estamos, a vida que não sabemos nomear mas tão só interrogar e amar ou desamar (distância que permite a contemplação, a melancolia, a reflexão, a confiança amorosa no outro, o anseio duma vida autêntica, etc) é, digamos assim, antropológica. Não implica a resposta cristã.

Enfim, temo com esta resposta ter confundido ainda mais e pensabundamente ;) Mas pronto, a malta aqui no burgo não tem autoridade nenhuma e fala o que ressente e pensente sem retenção alguma…

Há a resposta louca do amigo do Zé Gicas, o Espinoza, que é algo como: Se Deus é primeiro, vamos rapidamente a Deus, antes que algum modo da representação ou da imaginação nos medeie. Note-se, por mera honestidade histórica, que o Deus de Espinoza não se diz como o Deus judaico-cristão ortodoxo, e que o homem foi anatemizado por todo o bicho religiosamente instituído. E note-se, por honestidade pessoal, que também não se diz como o meu. E aqui falaríamos da busca e dos nossos modos de anseio e prática espiritual, tutti legitimi (perdoem-me os italianos…:)

Abraço.

12:36 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Ei, Bleuuzs, sim para mim totalmente em rasgo e medo de fé… Mas isso é já dar resposta, é já pôr algo frente à confusão e ao absurdo e à revolta ou ilusão…

Relativamente à tomada de consciência, toda resposta ou nenhuma são, digamos assim, permitidas (em linguagem cristã: Deus cria-nos totalmente livres, e por isso, à sua imagem e semelhança, possível é criar a resposta, de infinitas maneiras). E assim são possíveis revoltas demoníacas, desesperos cépticos, negações ateístas, infinidade de religiões etc etc etc E só Deus as pode avaliar – ou então nada.

Mas para mim, sim. É tal qual como diz(es).

Alguém!

Abraço!

12:46 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Oh querida Malu, pois claro que não te passaste... Estás apoiada naquele Mistério que tudo pode e a tudo responde ;) A escuridão de ti transluz de Deus. A questão é que nem todos têm essa resposta a ancorar-lhes o coração e o segredo dos dias... Beijo grande.

12:54 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Jorjão, abração, pázão! :):)

12:55 da tarde  
Blogger Klatuu o embuçado said...

Bonito, Vitor, e profundo... mas isto já não vai lá com metafísica e discussões de teologia!!
Abraço.

2:46 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Alô, Klattu.

Pois, conversa longa seria… Se uma pessoa se vai medir pelos resultados, o melhor é ficar quietinho. A injustiça da história (tanto a colectiva como a pessoal) só se aguenta na distância da ironia (a raiva frustra e a melancolia imobiliza). Enfim, este é o meu caso, como diria o Manoel de Oliveira… ;)

E a fé, pois. Mas precisamente, ela não é deste mundo. Plantar uma flor em meio de horrores, nem que seja para esta florir meio segundo e morrer… é uma das suas tarefas. Aliás, a morte tem também aqui a sua palavra. E sejamos claros ;) a eternidade também, e nada tem que ver com ontem ou amanhã: a eternidade, como é evidente, só se conjuga no presente.

Indico isto, sem atenuar a impressão que estamos a viver um momento grave da história da humanidade, digamos assim.

E seja como for, não bastam discussões, não.

Um abraço.

12:07 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home