segunda-feira, maio 15, 2006

Cor nostrum

O que és tu, meu Deus? Sei que és o infixável, o sussurro que percorre todos os momentos e coisas e por vezes, oh quão tanto e apenas por vezes – mal me tocas e eu fujo. E sei quão pouco és dessas fugazes impressões da minha carne anestesiada, que sugerem mais a tua ausência em mim do que a tua presença viva nos dias e nos sentidos.

O que és tu, meu Deus? Sei que estás substancialmente nas espécies eucarísticas, e que és o laço que fulgura em toda a abertura amorosa que nos dilacera perante um céu estrelado ou um rosto humano, uma mancha ocasional na parede ou o som do vento agitando os cortinados. Sei que és a beleza negada do mundo, e sei também que és na morte que me contempla e acolhe desde antes de eu sequer ter nascido. Sei que és na incarnação e no corpo místico. Mas tudo isto são formas incompreensíveis de te saber. Sei que te sei sem te saber. Porque e como me chamas não sei, mas sei que não o fazes directamente naquilo para que me dirijo, igrejas e sociedades, clubes e ideologias, identidades e confrontos, saberes e poesias, tecnologias e contratos. Como e porque me chamas não sei, meu Deus, a mim que de algum modo – de ti, certamente – amo a vida e nem por isso, o aqui estar no escorrimento dos dias e das noites, na deflagração e soçobro em que tudo acaba por se nadificar, sem antever sequer um pequeno motivo ou horizonte que a tal dê sentido.

O que és tu, meu Deus? Sei que podes tão marcadamente afirmar-te na tessitura das coincidências e discordâncias, e tão mascaradamente indefinir-te nessa mesma tessitura. Que podes em viva voz penetrada na minha revelar-me sinais e sentidos e nunca te esgotares neles. Que podes em ocorrências mostrar-te e guiar-me, numas simples palavras vindas do televisor no café e recontextualizadas em mim tão gritantes e confusas, ou num texto teológico trazido à minha ansiosa mente numa conferência ou pousado a meu lado no banco do autocarro onde me sento. Que te mostras e apelas nos confirmadores e contraditores e indiferentes – mas que mal volvo a atenção para te fixar, te propulsionas em suspeita e procura e desejo. Sei que te realizas em mim em toda a ternura e força com que me disponho a acolher a vida e a morte, em todo o esquecimento e consciência com que me disponho a crescer com os outros, com as plantas, com os animais, com as coisas, e sobretudo em todas as disposições que me cindem em bem e mal, justiça e injustiça, beleza e tédio, merda e maravilha – e em que cegamente toco a carne de que sou feito e assim chamada a trabalhar-se, a edificar-se, a reunir as asas e a queda nessa indizível linha que ambas supera.

O que és tu, meu Deus? Sei que és a resposta silenciosa à muda pergunta de que fujo mal sou e existo, e que não descansarei enquanto a minha vida inteira não assentar no teu mistério.

16 Comments:

Anonymous Anónimo said...

estão dois padres num bar e um pergunta: olha lá, se eva te tentasse com a maçã, e a culpa fosse da serpente, o que é que fazias?; ao que o outro responde: epá, não gosto de miudas.

12:37 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro/a Silence.

Bem, pobres padres que não percebem que o pecado original nada tem que ver com sexo... Mas não é grave, está preto no branco no Génesis.

Abraço.

1:26 da tarde  
Blogger Manuel said...

"Sei que és a resposta silenciosa à muda pergunta de que fujo mal sou e existo, e que não descansarei enquanto a minha vida inteira não assentar no teu mistério".
Gostava de ser eu o autor desta frase! :)

3:17 da tarde  
Blogger Migalhas said...

Parafraseando o Manuel, eu gostava de ter sido o autor de todo este texto.
Ainda bem que há pessoas que são capazes de dizer aquilo que eu não sou capaz.
Abraço, Vitor

4:07 da tarde  
Blogger Klatuu o embuçado said...

Homens de Fé... procura-se Capelão para abençoar as tropas... algum interessado?:)=

9:50 da tarde  
Blogger caminante said...

Caro Víctor: la pregunta es agustiniana. Y las respuestas son de un buen estudiante que -como decía Santo Tomás- estudia la Teología de rodillas. Sólo en la intimidad de la oración nos dejamos empapar por la Palabra: "Soy más sabio... porque m edito tus leyes".
Un fortísimo abrazo.

11:51 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caros 2 EMES ;)

Ó meujamigos, palavras, palavras, palavras… Curiosamente esta desgarrada brotou domingo de manhã, em que acordei com o vapor do mote envolvendo-me por dentro e por fora, Que és tu, meu Deus? O que me lixou o pequeno almoço que tomei enquanto a reacção literária a tal achaque se desenvolvia substituindo o leite e as torradas pelo papel e a caneta, e, vejam lá, fazendo-me faltar à missa da manhã a que tencionava ir… Fui à tarde, e ao que parece o padre não homiliou tão entusiasmadamente (ver étimo ;) como o outro padre da manhã, mas isso como se diz são aparências (pois pois, mas se elas não contam no aspecto místico e sobrenatural da eucaristia do pão e da palavra, relativamente ao aspecto humano da celebração…) Enfim, é a vida… ;)

O último parágrafo que o Manel se apropria (supra-legitimamente, como é evidente ;) é uma paráfrase e piscar de olhos mais ou menos consciente ao grande Aurélio de Hipona, a que se deve, e aí conscientemente, o título. Coisas do escreviver…

Quanto aos net-abraços, não são mesmo como os de corpo a corpo, mas pronto, é o que se pode arranjar ;) um forte e longo abraço aos dois.

1:38 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Maister Klatuu.

Isso aí, depende do combate a que estão entregues as tropas… A Guerra Santa não é inquisitorial nem territorial. Isto para os meus lados, como é evidente, que nem sou capelão. Reitero que a minha noção de civilização, fica para conversar num dia com mais vagar interior e exterior.

Abraço.

1:42 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caríssimo Caminante.

Eu vi logo que a ti, nada disto te ia escapar.

Eu sou veementemente agostiniano… Discutir apenas ideologicamente o bispo de Hipona é o mesmo que decretar a vida – há uma irredutibilidade dos dois planos. É como dizes, o Agostinho não está apenas escrevendo, digamos assim, para quem lê com o coração, penso que é impossível não ser tocado pelo facto de ele estar a orar, e tal movimento de vida chegar até nós através das palavras escritas… As ideias em Agostinho, são ideias vivas… Todas as palavras do Agostinho estão imbuídas duma entrega e implicação existencial que me faz senti-lo, por cima dos séculos e das culturas e das diferenças pessoais… um amigo do coração. O seu best seller confessional é uma exposição de si aos olhos de Deus e dos irmãos que o lêem – é o livro mais sério alguma vez escrito, dizia Wittgenstein, e eu não podia estar mais de acordo.

Um grande abraço.

1:50 da tarde  
Blogger Clarissa said...

«O que és tu, meu Deus?»
...e seria Deus se soubessemos a resposta? E será a resposta silenciosa ou feita de um silêncio que nos é incompreensível?
Eu procuro o silêncio, só assim poderei aprender a ouvir.

Caro Vítor... já por cá tinha passado pelos comentários no Blog do Lord, agora vim cá para deixar clara a minha posição quanto aos insultos ao que é ser Humano que se têm repetido pelos cantos do Lord. O que para mim está em causa não é a cor da pele mas o que é ser Pessoa. Imaginem-me como quiserem, Preta retinta, Mulata, Cabrita, Cigana...sou tudo isso e muito mais porque sou uma pessoa e por isso me indigno. Podem até imaginar que sou careca, modelo, corcunda ou paraplégica...o meu valor não reside em nenhum destes «acidentes». Quem me quiser conhecer, como Pessoa que sou,nas minhas convicções e nos valores que defendo, pode lê-lo no meu blog, não precisa de espreitar a cor da minha pele.
Para essa gente que defende a «raça ariana» preconizo um bom futuro...agarrados ao computador com uma nova tecnologia, inventada por eles próprios, que lhes forneça, de imediato, todo o código genético daqueles com quem se cruzam na net.

Um abraço.

9:29 da tarde  
Blogger aquilária said...

resplandecente ORAÇÃO.
o meu abraço, neste tão aqui do Mistério que nos abraça.

11:19 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Cara Clarissa.

Claro que não seria Deus... Até porque, posto nestes termos, Deus corresponde mais à interrogação que move que à resposta que define.
Claro, o silêncio.

Quanto aos discursos de sub-humanidade baseados num cacarejar de sobrevivência e selecção bacocos... pfffff. É evidentemente um índice de civilização, Júlio César integrar um druída celta nos seus conselheiros. Basear um sub-sub-sub-sub-darwinismo na cultura grega, latina, etc, é pura estupidez e desinformação. A civilização consiste em preservar e fazer crescer o que nos eleva e abre à beleza e ao saber. Fechar o Confúcio na China é próprio dum imbecil que preserva a sua imbecilidade. (Eu, por exemplo, sou um imbecil que, precisamente, não preserva a sua imbecilidade ;)

E tanto mais, mas merda para isto. Não merece muito pensamento, até porque não me apetece ter que ir tomar banho a meio do dia... :)

E para que quem passa aqui poder daqui espreitar as tuas convicções e valores, porei link para uma das tuas net-casas.

Um grande abraço.

1:10 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Querida Aquilária.

Ámen ;)

1:11 da tarde  
Blogger Clarissa said...

Caro Vítor...serás sempre benvindo às minhas «casas» :)

«Deus corresponde mais à interrogação que move que à resposta que define»...inteiramente de acordo.

Um abraço

1:24 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

vim. li-te. ainda não sei muito bem o que dizer.

5:08 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Cara Fairy Morgaine.

Olha, curioso, eu também não sei muito bem o que digo... ;)

Abraço.

12:33 da tarde  

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