quinta-feira, março 30, 2006

A cicatriz de Eva

Não me vejo aqui, ’tás a ver, nem em sítio nenhum, assim um algures sem rosto nem voz. E olho para as minhas mãos, isso eu vejo, vejo-me a olhar para as costas das minhas mãos, ’tás a ver, e não são as minhas mãos... Não são as que eram antes de eu estar aqui, se é que o estou. São mãos velhas, enrugadas, carcomidas. Mãos velhas, com pelos brancos e veias salientes. E depois aparece um espelho, e eu olho-me, ’tás a ver, olho-me e não sou eu, mas não sou mesmo eu, ’tás a ver, isto já foi há tanto tempo e agora, o que olhava para o meu olhar estarrecido, o que olhava para mim no reflexo do espelho, era um velho!... Um velho, ’tás a ver, não uma velha, um velho, um homem!... Não sei como é que o espelho não se partiu com o meu grito, o facto é que eu gritava e a imagem no espelho sorria... Sorria como se me acolhesse, como se reconhecesse alguém por quem esperara anos e anos e anos, ’tás a ver a ideia?... E depois nada, não sei o que se passou, vejo-me frente ao mar, e, bem, estou frente ao mar, ’tás a ver, e não há ninguém à vista, ninguém, a praia estende-se para ambos os meus lados e o mar em frente até ao horizonte, tudo bem, não é, tudo como normalmente é. As minhas mãos agora estão minhas, e o mar não é nenhum espelho e consigo respirar sem gritar, sabes bem como eu gosto do mar... Começo a caminhar à beira-mar, só naquela de me descontrair, sabia que não queria pensar no que acabara de acontecer... À cabeça assolavam-me sons, vê lá tu, sons de vozes, de entrechocar de objectos, trechos de música, mãos a roçar panos, motores rufando, sei lá eu morta, uma multiplicidade de sons ouvidos aqui e ali em determinadas situações mais ou menos intensas. Mas nenhuma fazia brotar no meu coração os sentimentos vividos. Era estranho. Apenas mental, percebes o que quero dizer?... E vinham imagens com os sons, ‘tás a ver, imagens das situações, mas vinham depois, as imagens acompanhavam os sons, eram posteriores a estes, eram distantes de mim ainda mais que os sons, como quando ouvimos a sonoridade duma situação a acontecer no quarto contíguo ao nosso numa pensão onde desembocámos por acaso e perdidos e cansados e nem o nome da vila sabemos nem queremos saber, apenas queremos dormir, é o que pensamos mas ali ficamos, até de madrugada, presos ao que se passa no quarto ao lado, ‘tás a ver, sem melancolia nem sobressalto ou raiva olhava eu os sons e imagens de mim a desfilar ao longo do mar e da extensão de areia e também sem muita atenção ou vontade, tão só se me impunham sem me despertar interesse... E então algo se sobrepôs àqueles sons e suas imagens, primeiro um som longínquo que se foi definindo como quando nos aproximamos do lugar donde o som provém, mas não era o caso pois eu estacara, parara ali junto à água e era o som que de mim se aproximava como as vagas da beira-mar, dissolvendo aquela estranha operação da memória, pois estes novos sons nada de meu me recordavam, eram como que reais, ‘tás a ver, quero dizer como que exteriores a mim, e à medida que se definiam fui-me apercebendo que eram chapinhanços, chapinhanços e gritos de brincadeira e alegria, e infantis, era o que me parecia, agudos e acelerados na excitação dos primeiros convívios e descobertas, e despertavam em mim interesse, sei lá eu morta porquê, um interesse muito vivo e intenso. A verdade é que aquilo me apelava, me borbotava toda de desejo de ver o que se passava, talvez por me parecerem miúdos e eu me ter visto velho, sei lá eu morta, e sei lá se foi o desejo ou a adaptação a novo momento que os colocou ali à minha frente vivos e visíveis, pois que em coração deposto os vi à minha frente como que de repente, na água nus e brincando, os miúdos, assim de sete, nove anos, os três, e o meu coração acelerando no meu peito e colocado todo neles como num susto ou numa cura... Não me viram logo enquanto os vi e olhei durante breves minutos, até que um deles acenou para mim com um saltinho chapinhado e um gritinho, e puseram-se os três a saltar e a chamar-me e eu avancei para a água... E vestida entrei no mar... Entrei no mar vestida, sei lá eu morta, vejo-me a chapinhar na água, ‘tás a ver, estava a chapinhar com os putos, gritando e rindo tal qual eles, tenho impressão que já nem pensava, mas já se sabe como é a memória... Sei que começámos nas amonas, ou lá o que é, aquilo de fazer o outro mergulhar, deves saber, é mesmo estúpida brincadeira de gajo, e aquilo no ínicio tinha o mesmo tom de brincadeira contente e despreocupada, o mesmo tom embora já a virar, porque a amona é uma brincadeira que sempre me angustiou, não é, aquilo do debaixo de água com mãos a impedir-nos de vir à tona... E foi mesmo como sonho de angústia, ‘tás a ver, eles cada vez a saltar mais para cima de mim e eu cada vez a ir mais fundo e a tentar pará-los mas nada, eles continuavam cada vez mais fortes e tão decididos como rancores deslocados e eu cada vez mais sem ar e assustada, mesmo assustada, ‘tás a ver... Calma o quê?!... Não ‘tás a ver?... Claro que...! Merda!...

Aquilo continuou, cada vez mais fortes e agitados eles me amandavam para debaixo de água, para debaixo de água, e eu a debater-me já em total vivência de angústia, toda eu era medo e histeria e a água turvava-se com a agitação, cheia de bolhas de ar e de grãos de areia, e por fim fiquei com a face encostada à areia, e eram os pés deles que me prendiam, os pés e não as mãos, e sabes, não era só pela forma que eu sentia que eram os pés, não, era também pelo odor, ‘tás a ver o delírio, o cheiro a xulé, porque cheirava a xulé debaixo de água e cheirava a xulé até ao agonio...

E depois confusão, ‘tás a ver, como quando fui atirada para a praia depois do velho no espelho, passo daquele sufoco histérico para a areia à beira-mar, deitada como uma náufraga cuspida pela tempestade só que não estou ofegante ou desfeita, nada, como se agitação nenhuma me tivesse violentada, nada, ‘tás a ver, tranquila, e ouço uma voz por trás de mim repetindo: Nos pés, só há caminho e xulé, e percebi porque não ofegava nem tremia, que aquilo me bateu na consciência como um soco no vidro duma janela, eu não ofegava porque não respirava... ‘Tás a ver, o meu peito não arqueava, a minha boca abria-se e nada sorvia... Levei a mão ao coração, ‘tás a ver, e nenhuma pulsação embatia nos meus dedos, eu estava imóvel por dentro, estava imóvel... Peguei num vidro da janela que se quebrara, tinha de me certificar, ‘tás a ver, tinha de ver, de perceber que não percebia... E cortei-me, mesmo aqui nos pulsos, podes ver, dois fundos lanhos em cada um, e vês, nenhum sangue, nenhuma ferida viva, percebes, nem sequer me doeu... E foi então que a segunda janela se estilhaçou, morta, eu estava morta, por todas as seringas do hospital dos capuchos eu percebi que estava morta e ali, estava morta sem ter ido, sem ter desaparecido... Estava ali e morta, fiquei à toa, e vim logo a correr para aqui... Vim logo a correr para aqui... Aqui fiquei e morta, meu amor e meu Deus, aqui fiquei e morta, e levámos tanto tempo a chegar, tanto tempo tenso...

8 Comments:

Blogger Manuel said...

Vi que tinhas um post novo e "Vim logo a correr para aqui..."! E depois desta prosa toda fiquei cansado... Tenho de a digerir...
Abraço

8:09 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Alô, Manel!

Eh eh eh... para quem consegue a extenuante tarefa de postar um nada-dizer, vir aqui culpar-me pelo cansaço... bem, mas o que conta, dizeres ou não dizeres, é o que fica, e como fica, depois de digerido - a maioria das vezes, quase nada ;););)

Abração!

PS: o "a maioria das vezes quase nada" é capaz de ser um exercício de estilo... quero dizer, tenho a impressão que talvez, pelo menos no que me cabe, fica sempre qualquer coisinha...

PS 2: Não estou com cabeça hoje, quero dizer, dormi mal, ou melhor quero dizer, pouco... O que vale é que já é sexta-feira... :)

1:41 da tarde  
Blogger Goldmundo said...

Faz sentido.

7:18 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O sonho é ver formas invisíveis
Da distância imprecisa,e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte-
Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa

Ana

7:35 da tarde  
Blogger Lord of Erewhon said...

Andas muito V. Ferreira-existencialista-velhote-com-a-cabeça-a-abarrotar-de-merdas-frente-a-um-espelho! Gosto mais da versão do HH... mete-se Bach a tocar e chama-se uma puta adolescente!

2:17 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Mestre Gold.

Cherche la recherche ;)

Abraço.

12:58 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Cara Ana.

Onde está Deus, mesmo que não exista?

(Do mesmo Pessoa, e ecoando esses versos de horizonte e verdade… :)

Abraço.

12:59 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Cher Monseigneur.

Huuum… percebo mais ou menos a ideia… Curiosamente não gosto do Virgílio (do português, que o romano é outra conversa…) Mas gostaria de focar os passos em dentro e não os passos em volta – porventura disparate, e o único modo de indicar os primeiros é dizer os segundos… (Também gosto mais da versão do HH… )

Escreviver é árduo.

Abraço.

12:59 da tarde  

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