quinta-feira, março 09, 2006

Prece e voto, com nota dedicatória

Às vezes tenho impressões de Robinson Crusoe. Pensentir que há uma infância da vida, mas uma infância que ainda não ocorreu, um possível entrevisto que talvez fulgure, ou talvez iluda. Um futuro, ou todos os futuros em intensidade – ou dissolvidos na extensão.

Impressão de vazio que daí advém, um pouco de medo, apreensão, pequeno tremor rápido mas frio, gélido, uma breve e inapagável incompreensão, indelével e completa, uma incompreendida incompreensão do que se passa – connosco próprios.
Estar perdido. Onde estou?

E não na forma duma ideia ou duma coisa nem duma relação, mas o instante compacto de estar vivo, o kitsch e auroral agora imediatamente aqui – e aí, em simultâneo, sempre uma alteridade, uma abertura, uma espera. Algo lá fora, um pequeno olhar que começa. Só se olha mutuamente, e mesmo a solidão extrema, se fosse possível vivê-la – é um puro espelho.

É da vida que se trata. Da minha vida, e é o único problema. Quero dizer, nem sei se é bem um problema. Passa-se que tenho de a fazer, e ela a mim. É problemático, o viver-se, mas quem sabe, se a vida ela própria – não o é.

Há dias em que abomino que se represente o cristianismo purificado dos seus pecados históricos – das suas políticas e inquisições, das suas inumanidades e blasfémias. Porque o cristianismo não é Deus – ainda. E ninguém sabe como é – ainda. Cristo é-nos Deus, e o resto – na Parusia. Que nenhuns olhos humanos sequer entreviram.

Tenho muitos dias assim, temo bem.

E as torturas e as mortes do juiz inquisitorial e cego, as revoltas e orgulho da impaciência e do imediato, em tudo participo, nem que seja pela renúncia. São como os estertores desesperados duma paixão, um grito da vida em violência por vezes assassina, tontos que se debatem no terror com as defesas todas em riste, todos nós possivelmente, em qualquer momento. A vida é doida, e tantas vezes redonda. Há estórias malucas, como que já no piroso duma série de domingo à tarde – campos de concentração e tortura, mortes violentas e em catadupa, uma impensável folia de gritos inaudíveis e afundados. Como se a vida fosse um barco – e a âncora mil e três vezes mais pesada do que este. E depois tanta revolta e raiva, tanta confusão e desespero – tanto suicídio acordado. Mas os infernos do terror ainda são deste mundo. Há talvez outro inferno. Do tamanho de todas as esperanças desiludidas, nem uma réstia de luz – a melancolia dum domingo à tarde que nunca ocorreu. Fica-se sem infância nenhuma. Não há talvez olhar, não há nada, não há possíveis – sem amanhã, e no entanto aqui.

E nesse momento, Senhor, dá-me a alegria, do céu que é o teu lugar dá-me essa alegria, dá-me tão só essa alegria do céu que é a tua morada.

Dá-me a persistência, secreta e íntima, do coração anseando dentro e pela comunidade dos fieis e das suas traições, e faz-me aceitar os inaceitáveis pecados que forçosamente agirei e padecerei. Porque de algum modo terei de estar sempre mais do lado dos crimes passionais, do que da ausência de paixão. Dá-me que não haja amenização do combate, daquele que começa por dentro, sempre, do céu que é a tua alegria, a tua inominável e nossa alegria, a vida em chama, em indizível chama.

Há dias teofânicos – evidentemente insoníacos.

E de igual e reverberado modo, nos momentos em que a naturalização contemporânea da religiosidade vincar o seu aparente esplendor, não me encontrarão na indefinição espiritual de optimismos sem provação, nem na doação de valores estritamente culturais da moral e da sociabilização – estarei muito provavelmente a jantar com um blasfemo, ou a desjantar com um místico.




Nota: Este post foi instigado, entre outros motores e motivos que ecoam, pelo escutar da presença de alguém que net-anda por aí e aqui.

Não te nomeio directamente, não apenas pelo teor talvez pouco consensual deste post, mas sobretudo por um certo sabor a intimidade com que, em mim e para mim, se dá essa instigação. Não se trata também de esconder seja o que for – até porque para bom entendedor… - mas da busca de expressão adequada ao sentido das coisas.

E digo-te que relativamente à segunda mulher, também eu tenho pena dela. E ainda mais alargadamente, também tenho pena dele, e mais alargadamente ainda – de ambos. São terríveis os pecados dos santos, até porque são daqueles que só mesmo Deus poderia identificar, nem o próprio mesmo mas só mesmo Deus mesmo. Aqui ninguém pode pretender distinguir o que é provação, e o que é queda. “Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus”, e acrescentou esse santo: etiam peccata, mesmo os pecados.

Também penso que há uma noite primordial, que não se confunde com as trevas. Há a noite do dia da criação; e há as trevas do pecado original. E sim, que os anjos nos guardem – porque está tudo ao molhe, e na obscuridade nem tudo é o que parece. E o orgulho, pai da mentira e da separação – não se distingue bem da coragem e autenticidade frontal com que se é chamado a ser cristão. Tentarei sempre ter cuidado. É com dúvida uma batalha maior, íntima e quase absoluta. E nunca vivida na clareza, toda ela deflagrando-se em sombras e indefinições, tentações. Até porque, repita-se, se fica perto do maior poço de orgulho que habita a terra.

Meu caro, tanto te devo, nem tu sabes, nem eu posso dizê-lo – porque nem eu o sei, afinal, o que é o saber nestas coisas?... A vida verdadeira, não faz contas.

Nous ne sommes pas encore nés, et nous dormons.
Não tenhais medo – disse o JP Special, negro e brilhante.
O cristianismo vive da assumpção das duas asserções, aos tropeços e explosões, há muito tempo, talvez desde que somos, algures - humanos.
E ainda assim – tout à vous, avec mon sang, et la victoire. ;)

19 Comments:

Blogger aquilária said...

debaixo de uma pedra do caminho, está escondido um (des)aforismo para ti.
abraço

2:56 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Alô, Jorge!

Eh eh... tentar estar atento e disponível... para o que importa.

Não sei muito bem o que queres dizer com o objecto do texto ser aberto... Mas a intenção do texto perspassa voluntariamente nas palavras utilizadas.

Quanto aos fiordes, pois realmente Marrocos está mais à mão e mais influente. Ainda nos lixamos com esta mania de querer ser do primeiro mundo... ;)

Dois ou três momentos humanos... ganda dia, pá!

Abração, e não te percas no ir não sei para onde... ;);)

7:04 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Cara Aquilária.

Aforismo encontrado... eh eh, muchas gracias!

Abraço.

7:05 da tarde  
Blogger Eduardo Tetera said...

Déjà vu...

9:26 da tarde  
Blogger Manuel said...

"Há dias teofânicos – evidentemente insoníacos".
Pois na minha vida é ao contrário: há noites insoníacas - depois de de dias teofânicos. :)
Abraço

3:21 da tarde  
Blogger caminante said...

Caro Víctor,unos días de especial trabajo no dejan clama para pensar en tus bellas palabras. Las guardo en el corazón, las medito y prometo contestar. Quizá lo haga a tu dirección de correo. Me parecen tan serias que no soportan un comentario de Blog simplemente. Sólo decirte una cosa: creo que todos y cada uno de los días son "teofánicos". Él nos habla en cada acontecimiento, en cada persona con la que nos cruzamos,en cada libro que leemos, en cada puesta de sol o amanecer. Sólo necesitamos estar despiertos -que no es lo mismo que insonníacos- para escuchar su voz que nos habla desde "la suave brisa". Él está ahí.
Un fortísimo abrazo.

8:52 da manhã  
Blogger Eduardo Tetera said...

Meus dias são, geralmente, insoníacos; mas os Teofânicos ainda estão por chegar...

6:54 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Alô, Jorge!

Sei lá… Percebo que fora a intertextualidade tão em voga, os sentidos dos textos residam para além e até contra os próprios. O que não significa aleatoridade dos textos mas sim secundarização do dizer à própria vida e pessoas em que ocorrem. Esta não aleatoridade implica a assumpção dum rigor no dizer e na ignorância, absoluta e veementemente contra a desinformação etimológica e histórica em que vive a contemporaneidade ocidental. É evidente que é aborrecido, visto que obriga a sair da ambiguidade e relativismos que vivem da ilusão de feelings e ondas e indefinições, e passar a falar das coisas frontal e consequentemente – o que não advoga nada de favorável ao discurso publicitário e opiniátrico que tão gloriosamente apregoamos como liberdade democrática e que não passa de ilusão excelsa com que nos brindamos a nós próprios. Para nos alienar, já nem é necessário força directa – já estamos suficientemente domesticados pelo pai da mentira.

Há lá mais nuvens que céu – aqui no mesmo sítio ;)

Abraço de graveto em negra praia, porra!

3:44 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Manel.

Mas que raio, como tiraste tu do dia a noite?... Deve ser poesia... ;););)

Abraço.

3:47 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro caminante.

Estás à vontade – como sabes.

É verdade o que dizes. Mas como sou feito de confusão e distracção, certos dias rasgam-se com a evidência da Sua presença… e o hábito distractivo dos outros dias, por contraste, preenche de insónias estes de mínima e preguiçosa atenção.

Abracíssimo!

3:53 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Eh pá, caminante, agora em eco apercebi-me... nem tenho a certeza que a Sua presença seja constante e idêntica dia após dia na vida de cada qual... Há talvez dias com mais intervenção directa... não sei... outro abracíssimo...

3:55 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Eduardo Martins.

Déjà vu ganha sentido só e somente se déjà vécu... E aí, até uma foto pirosa dum beijo ao por do sol, pespegada num calendário num qualquer café... nos arrebata lágrimas dos olhos.

Os dias geralmente insoníacos... bem, já não é mau ;) Quanto às teofanias, terá evidentemente de se dirigir a Ele.

Abraço potugrasileiro!

3:58 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Vítor arrepiei-me e deu-me vontade de chorar...

foi exactamente com um "não tenhais medo" que esta história começou...

"tanto te devo,nem tu sabes..."

nunca sabemos pois não?

um grande abraço

8:02 da tarde  
Blogger caminante said...

Caro Víctor, dejé en tu correo particular una larga nota. Sé que "estou a vontade", lo que agradezco. Si te parece, puedes hacer de la nota el uso que veas más oportuno.Y me alegro ser mediador de una peuqña luz en tu vida.No pretendo ser otra cosa.
También para tí, un "abracíssimo"

9:27 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro anónimo.

Abraço grande, sempre :)

Os cristãos somos evidentemente loucos... Apresenta-se uma visão terrível da vida e do mundo, um inominável Deus que a isso preside num igualmente inominável amor, uma resposta existencial impossível de executar, e depois vem o JP Especial e tantos outros todos todos e dizem: Não tenhais medo, escancarai as portas!...

E no entanto... (silêncio)

2:21 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Caminante.

Pois, lá está... Se vamos por aí, eu também te agradeço... e nunca mais daqui sairíamos... ;)

Obrigado mesmo, e abracíssimo.

2:22 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

" a solidão é o exercício constante da possibilidade"

4:44 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro/a blues.

Sim. Todo o acto pressupõe alteridade.

Abraço forte.

7:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Hi everyone! I don't know where to start but hope this site will be useful for me.
Hope to get some assistance from you if I will have any quesitons.
Thanks in advance and good luck! :)

3:07 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home