quarta-feira, fevereiro 22, 2006

HP 2

Pois que pressentimos que nenhum de nós sabe fazer muito bem isto da vida, o resto é bazófia, nem no mal nem na acutilância sabemos o que estamos a fazer ao certo enquanto agimos e pensamos – e o resto é ilusão de conseguir ver-se a si próprio. Executamo-nos assim sem saber muito bem como, repletos de hábitos ocasionais e contínuas e cegas apalpadelas, não passamos de cinzas de identidade, é o que pressentimos na intimidade do outro. No seu olhar que nos olha, do fundo de si próprio que nunca seremos, fechados em nós próprios de certo modo – pois no entanto olhando-se de cá e lá. Sem o amor, a realidade não passa de um sonho – não há outro, a floresta desaparece na escuridão e nem um grito que não seja nosso.

O amor é anterior a gostar ou não gostar das coisas e pessoas, é primeiro abrir-se a elas – é a luz onde as coisas se revelam ou nada. Recalcamo-lo é desde logo, na ante-primeira infância e continuamente até à morte. Dissipamo-nos nos momentos segundos, que se soltam então dispersos – e dedicamo-nos às nossas afecções e afinidades que se reúnem no vazio, e assim soçobram perante a morte ou qualquer pequeno desespero. E mais frágeis até, por vezes basta uma dor de dentes para já não sabermos quem ou o que amamos. Ou para sabê-lo desesperadamente. Que estamos inteiramente fechados e distantes e intocáveis.

O exterior olha para nós com ferocidade.

É frágil esta beleza – tal qual a presença do outro e da vida que se esvaem como um fogo que nos foge. Agredir o aparente ser que se nos mostra duvidoso é participar da fuga, é ser na pertença deste mundo que se esvai na nossa pequena vida.

É só por isso, por nada mais. Não é preciso muita conversa, apenas a adequada impressão de vida, sem bazófia nem revolta, como te sentes mesmo aí na vida que decorre e não apreendes na infância ou na velhice ou entre ambas?... Nesse sentido, só há ética no amor, o resto é conversa de interesse ou cobardia. Momentos segundos pois, e que ao tomarem-se por primeiros e fundamentais soçobram no absurdo. Chocar-se com o absurdo do mundo, ainda é pertencer-lhe. A ironia é um rigor amoroso, assim como o é a bondade. Basta o abismo que o outro é perante o nosso, para hesitar matá-lo por nossa confusa e revoltada causa, seja qual for o nosso suposto alento de viver e de morrer. O assassino, é o mais solitário que reside em nós. E o mais solidário, ao contrário do que pensa a ética contratualista, porque no recalcado estado em que nascemos e vivemos, debater-se no absurdo é um quesito de sentido, negativo mas ainda assim. Antes revoltado que justificador do mundo. A diferença é que o primeiro tem os crimes à mostra e apropriados – respondendo directa e desesperadamente por eles. O segundo legitima-os e legitima-se perante o mundo, e os seus crimes prosseguem indirecta e extensivamente das almas aos corpos e às moléculas da atmosfera. Só o amor redime ambos, só o alento perante o abismo e sua decorrente queda – no vazio ou em Deus. Poder-se-ia dizer até: no vazio e em Deus.

Basta o abismo que o outro é para sequer querer magoá-lo, aflorá-lo com a mínima dor – o que fazemos mal respiramos. Mas também lhe damos luz nessa dor, que sentimos como alegria que irrompe de um para o outro e tudo vence.

S. Francisco fala com lobos e com o sol e a lua, Santo António com os peixes e com as cidades, Teresa de Calcutá com os intocáveis e com os reis do mundo. Trata-se duma pura e indizível esponsalidade que se deixa fecundar pelo maculado mundo dando à luz imaculados frutos.

Esta esponsalidade, naquilo que é dizível humanamente e entre outros aspectos, exige que se deixe o outro revelar-se enquanto ser próprio, enquanto execução simultânea da incognoscível vontade criadora de Deus e da liberdade e verdade do outro, das pessoas às coisas e animais e discursos e etc nos infindos significados do verbo divino. Por isso e não só, a relação entre a ética contratualista e o amor não é pacífica. Deve-se levar a tribunal ou prender o velho hebreu antes de ele estar prestes a assassinar o seu próprio filho?...

E foi-nos revelado que lá no fundo e na superfície há uma alegria, e mais pequena e intensamente a pressentimos. É terrível isto do amor – não anula o vazio das coisas e a impossibilidade de aceder ao outro, e chama por ambos inteiros e vivos.

24 Comments:

Blogger Vítor Mácula said...

Caro Jorge.

Eh eh eh... Pois claro que tem... "Eis-me!"... O que fazer, o próprio e o outro e ambos e o resto é que é o berbicacho...

Olha pois e por ora... abraço!

3:04 da tarde  
Blogger Caio Kaiel said...

Olá Vitor...
Lindo texto.

Maravilhoso, já disseras-me noutra vez que o "Espírito é o mesmo"... tenho certeza.

Hoje eu estava a andar pela cidade e vi pessoas muito pobres, senti-me parte deles quando me vi de de paletó e gravata... queria dar alo, mas logo percebi o quanto eu era também como eles... pois a minha vontade de dar era outra forma de pedir algo deles, seria o perdão por não fazer nada contra aquela miséria... enfm, passei adiante meu caminho.

Logo mais pensei numa conhecida e entendi a distância entre ela e a realidade, nas oposições dos abismos... (Explico: ela sempre teve seu próprio automóvel e jamais usou transporte coletivo)... pergunto, como uma pessoa assim pode amar o mundo - amor distante não é amor.

"Chocar-se com o absurdo do mundo, ainda é pertencer-lhe. A ironia é um rigor amoroso, assim como o é a bondade." - perfeito!!!

Abraços e que Deus lhe abençoe.

7:35 da tarde  
Blogger Manuel said...

Mas que belo naco de prosa!
Abraço

9:58 da tarde  
Blogger Lord of Erewhon said...

Muito interessante este texto... cá voltarei... Fiquei tão fraquinho com o esforço intelectual dispendido lá em baixo - salvo seja! - que vou ter de chupar um pescocinho e comer uma hóstia! JAJAJAJA!!!

10:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Já li o texto várias vezes e... não compreendo. Mas pode ser de mim...

11:38 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Pescador.

O abismo está em nós, e no ser e olhar do outro... Tanto faz a distância ser a do automóvel ou a do pedestre ou do transporte colectivo. A distância é sempre... infinita ;) E só o amor a transpõe, e nos preenche...

Abraço!

6:15 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Manel.

E a poesia, não está no naco??????????

;)

Poetabraço! eh eh...

6:16 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Lorde.

Bem, esse riso é mesmo... fantasticamente estrondoso... Eh eh...

Até!

6:19 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Anonymous.

Bem, dito assim... eu diria que não deve ter nada que ver com as suas preocupações e apelos e questões, e nesse caso... não precisa de lê-lo nem eu de esclarecê-lo na medida das minhas parcas capacidades. :) Não deve corresponder a nenhum momento do seu trajecto de vida e sentimento e pensamento...

Irra, nem sequer um enunciado compreendido?!... Ou o sentido global do texto?...

Abraço.

6:22 da tarde  
Blogger aquilária said...

amar é abismar-se no outro.

um grande abraço,vitor.

8:54 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Poética Aquilária.

Nem mais! Nem menos!

Que maravilha assim dito.

Forte abraço!

1:28 da tarde  
Blogger Ver para crer said...

Tenho andado com uma grande gripe que nem me deu para navegar na internet.
Agora, um pouco melhor, dou com este lindo texto do amigo Vítor Mácula.
Parabéns e bom carnaval para ti também.
Que, quanto amim tenho de me ir avinhando e abifando para dar cabo da malvada.

1:19 da tarde  
Blogger Em contra-corrente said...

Gostei deste teu texto que consegui entender. Pelo menos, julgo que sim. E aproveito para te desejar umas boas férias de carnaval.

1:22 da tarde  
Blogger Eduardo Tetera said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

4:44 da manhã  
Blogger Eduardo Tetera said...

"O amor é anterior a gostar ou não gostar das coisas e pessoas, é primeiro abrir-se a elas..."
Sublime, Vítor!
Cheguei até teu blog pelo Morfeu (Anomalias) e já gostei. Parabéns e sigo lendo teu espaço.

4:45 da manhã  
Blogger caminante said...

Aquilaria, posees la cualidad de encerrar en pocas palabras una inmensa riqueza.´
La precisión del lenguaje es fruto de una gran vida interior.
Aquilaria: las esencias se guardan en frascos pequeños.
Un fortísimo abrazo.

5:38 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O que quer dizer HP2.

6:32 da tarde  
Blogger aquilária said...

anónimo, acho que deve ser:
AgaPe - 2

...ou então é o 2º post que a Hewlett Packard patrocinou aqui ao amigo vitor. eheh

um abraço

8:38 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Ver para Crer.

Não há nada como uma boa gripe para acutilar a consciência da carne-cinza de que somos feitos, e que tão bem se mostra no Carnaval ;)

Espero que já a tenhas afinfado o suficiente para dar cabo dela (à gripe). Essa do “avinhando” é porreira… Faz-me lembrar a mezinha que fazem lá na minha terra para afinfos gripais: vinho quente com açúcar caramelizado nele diluído… tomado à lareira onde é cozinhado… É cá uma pastilha…

Abraço.

11:33 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Cara Em contra-corrente.

Eh pá, foram boas, frente ao mar, à lareira (sem mezinha de vinho açucarado… :) Mas cá estou de volta à agitada e sufocada vida urbana, que também aprecio (enfim, isto agora seria uma conversa...)

Espero que as tuas, se as tiveste, também tenham sido boas.

Um abraço.

11:38 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Olá, Eduardo Martins, e abraço!

11:40 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Anonymous e Aquilária.

Pois, eu também ecoo esses dois significados que a Aquilária refere, mas como as palavras são mais ricas do que quem as profere (curiosamente e noutro sentido, a inversa também é verdadeira) suspeito de outros significados. Heart of the Pharaon… eh eh…

Bem, e a Hewlett Packard, não é bem um patrocínio, que tive de pagar o raio da impressora… :)

Abraços.

11:45 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Alô, Caminante, um fortíssimo abraço!

11:47 da manhã  
Blogger caminante said...

Caro Víctor, gracias. El Caminante anda estos días enredado en múltiples quehaceres propios. No digo que roben tiempo. El tiempo no es mio. Sólo yo me lo puedo robar cuando no lo dedico a lo que debo. Espero regresar pronto.
Un fortísimo a brazo.

11:00 da tarde  

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