segunda-feira, junho 23, 2008

Sequela

em memória de Martinho Lutero


É a minha cruz, tão inúmeras vezes ouvimos dizer em relação com um desastre da vida, a loucura ou o desespero nossos ou de outros, um cancro no esófago e o cabelo a cair juntamente com a vitalidade e o corpo falhando gradualmente, fenecendo, ou um filho que se suicidou, alguém que enche as veias de merda, a criança a rebentar de leucemia, a guerra e a morte que os nossos actos produzem e exaltam e mantêm, o acidente que matou todos os que iam no carro, toda a nossa tenebrosa maldade a ribombar por dentro e por fora até ao longínquo horizonte que nos estilhaça – e assim é, deveras assim é.

Mas dentro desta feroz consciência jaz a possibilidade do mais discordante equívoco - o de dissolver o cristianismo num estrito diagnóstico da existência e da natureza. Que com estas esteja conforme, é um garante da sua veracidade; que se reduza a essa lucidez, sem transfiguração disso tudo de que se toma terrífica consciência – é o perigo subtil da colisão da lucidez com a revelação do crucificado.

Todas as nossas células e respirações tendem com todas as suas forças a renegar o sol negro do gólgota, esse abismo em que deus grita o seu próprio abandono, em que o silêncio maior que todas as noites e fracturas mortais – nos é mostrado em toda a sua brutalidade. Lemá sabachtáni, é o segredo da cruz de cristo, o deus que se abandona a si próprio, e que nesse abandono reactualiza a impossível aliança entre a divindade e tudo o resto que em sua própria medida – nega deus a partir do seu próprio ser criado.

A cruz de cristo, que arrebata todas as cruzes temporais e confusas, crava e justifica estas na tensão da deserção divina e humana, no aniquilamento, e que corresponde ao sofrimento máximo de ansear em última necessidade pelo deus e este ter de todo em todo – abandonado o lugar.

O cristão é um sem-deus que o sabe, e nessa luz negra, nesse abismo de injustificação – abraça todas as cruzes e alegrias da vida com a mesma tensão, o mesmo desespero de ausência, a mesma alegria de clamor pelo deus oculto no seu próprio desaparecimento.

Todas as sortes e todos os azares, todas as dores e prazeres, todas as desgraças, as felicidades, toda a lepra e toda a numerosa geração e exaltação – são dadas a trouxe-mouxe na mais profunda e intensa e gritante ausência de sentido, esse rasto de abandono do deus, esse indício feroz e fugidio que fulgura no vazio.

O cristão é aquele que sabe que a deus ninguém o viu; aquele que sabe ser chamado a vê-lo no jardineiro que cuida da espera e da procura, no forasteiro que rompe o pão à nossa mesa, que nos mostra as feridas do seu corpo junto às nossas; e de sobremaneira, vê-lo na ascensão, e nesse desaparecimento maior proclamar a sua presença com línguas de fogo até ao século dos séculos, até ao fim do mundo. É isto aliás, que nos sinaliza a realidade do deus na eucaristia, e no beijo da impossível paz.

Amar em contrário das aparências e das próprias inclinações e desejos, essa a pequena violência, que pode muito bem – e tantas e tantas vezes o será, quem sabe se sempre – anular-se mantendo-nos imóveis na espontaneidade de amarmos o e quem naturalmente amamos, de sofrermos as inevitáveis dores da nossa própria vida e morte e dos nossos; mas para tais cruzes sabermos, não é preciso deus nenhum.

A cruz de cristo mostra o amor do deus, o ilimitado amor criador que sustém todos os átomos e almas da história inteira de tudo, e isso és chamado a habitar e seres habitado por, nisso és chamado a viver e a morrer com, o grito do deus deflagrando em todos os teus nervos e momentos, aí mesmo agora e sempre, na alegria e na angústia e na hora da morte sempre.

Ide pelo mundo e tranfigurai todas as boas e más novas, ide pelo mundo e fulgurai tudo com o fogo da cruz, ide pelo mundo e baptizai; pela minha presença oculta no vosso ser e nos vossos actos eles verão, talvez não acreditando mas verão – que a carne ao ser beijada floresce para a eternidade.

Que a paz esteja convosco, repeti e anunciai-o, com a inocência e a astúcia anunciai, baptizai e incendiai. A inocência manter-vos-á no invisível deus e no seu único e amoroso acto; e a astúcia proteger-vos-á do subtil engano do mundo, essa voz demoníaca que em toda a carne sussurra.

Pois tal como o deus é único, também único é o perigo mortal de o negar, único o pecado, e só o imperdoável é propriamente pecado, ou melhor dito – sua fonte e origem.

Sempre que não violentardes a vossa natureza renovando-a no sangue do deus, no abismo da sua ausência e clamor, estais cuspindo no nome do deus; sempre que não renegardes as vossas inclinações e não amardes o vosso inimigo e abraçardes a maior estranheza, estais apagando o fogo do vosso baptismo; sempre que julgardes a alma prostituída ou o corpo corroído pela lepra, estais amaldiçoando o vosso próprio coração.

O meu jugo é suave mas terrível é a minha dor, não atenuai a minha loucura confundindo o meu amor com os desejos do mundo, da carne e da mente, mas deflagrai o meu amor nestes e salvai-os, deflagrai violentamente. Só a tempestade acalma a própria tempestade. Esta é a minha paz, a espada que nenhuma guerra humana fundirá e que eu vos entrego até ao fim dos tempos, este fogo que desce dos céus e tudo cinde e cinge, tudo divide e transforma.

Sabei que a minha cruz é amor e nada mais, e que abomino todos os vossos ídolos de poder e manipulações mútuas, todas as vossas potestades vazias com que pretendem preencher a vida com o vosso eu, todas as vossas vãs palavras e orgulhosos actos eu abomino; sabei que eu sou o vosso deus, o único deus, e que me manifesto lavando-vos os pés e morrendo por vós e nada mais, assim fazei sempre e também e comigo estareis até ao fim dos tempos e a inteira eternidade será celebrada em toda a terra e nos céus e nada mais.

(O ideal concreto – seria ser de cristo; no silêncio maior sê-lo e nada mais.)

1 Comments:

Blogger Vítor Mácula said...

Vietname, lugar de tanta dor, e por tal jardim de tanta fé e coragem, não apenas católicas. Que o sorriso de Phanxicô Van Thuân nos guie e ilumine:

“Disseram-me que minha nomeação era fruto de um complô entre o Vaticano e os imperialistas para organizar a luta contra o regime comunista. Vinham-me à mente muitos pensamentos confusos: tristeza, abandono, cansaço depois de três meses de tensões... Porém, em minha mente surgiu claramente uma palavra que dispersou toda a escuridão, a palavra que Monsenhor John Walsh, Bispo missionário na China pronunciou quando foi libertado depois de doze anos de cativeiro: ‘Passei a metade da minha vida esperando’. É verdadeiríssimo: todos os prisioneiros, inclusive eu, esperam a cada minuto sua libertação. Porém, depois decidi: ‘Eu não esperarei. Vou viver o momento presente, enchendo-o de amor.”


abraço, sátiro

11:50 da manhã  

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