segunda-feira, dezembro 17, 2007

Do servo e livre arbítrio

Temos um espelho curioso e tenaz. Porém em nós, somos a tensão de manipulação do outro em nosso proveito, em nosso máximo proveito. Somos os violentadores do outro, os salteadores da sua carne, deuses déspotas do nosso fechado e fugidio universo. Por dentro tanta maldade e confusão, susto mortal. Tudo depende do tamanho da nossa mentira, da tenacidade espelhada. Nenhum de nós, mesmo nenhum, aguentaria ver-se a si próprio na verdade, nem sequer num piscar de olhos. E é sabendo disso, que de tal fugimos como o diabo foge da cruz, precisamente aliás. A ética e a estética, claro. Não passam da imagem da nossa mentira. O sorriso que espelhamos, pobres de nós, as tretas que contamos uns aos outros. Os mais convictos são evidentemente os mais perigosos, os que propagam o mal com mais cegueira. Mas o que é incompreensível, absolutamente, é que o inverso seja igualmente verdade: o sentido de todos os nossos anseios, ser a bondade e a beleza. E no entanto, é confusamente o que se passa, e nenhum juízo humano pode dar conta de tal. Isto também se propaga, também se desenha, e só a voz dupla nos dá rosto, a beleza e a maldade, o crime e a santidade, a ira e a ternura. Olhar a história da humanidade, assim como a nossa própria e pessoal, é contemplar o impossível desenrolando-se. O assassinato e violação contínuos entre mães, pais, filhos, assim como o seu mútuo amor e alegria. É por isso que só a cruz nos define, uma negação, uma intercessão de contrários. A monstruosidade esplendorosa de que falam os mais lúcidos, os da lucidez que dói mais. E o mais estarrecedor, é sabermos que não estamos em nós, em nenhum momento, nem quando destruímos e oprimimos, nem quando cuidamos e libertamos. Onde afinal o nosso lugar, dá ideia que não sabemos, mas apenas entrevemos, sonhamos. Isto parece um monólogo de bêbedo, claro, ou uma impressão deprimida duma solidão assustada, o que pode confirmar-se pelo próprio sentido do que é dito: são precisamente os mais perdidos dentre nós, que sabem o que se passa connosco, eles que tocam o fundo. São aliás eles, os primeiros a reconhecer o deus que revela, e não os legalistas, que com o seu saber, expulsam a verdade dos templos.

7 Comments:

Blogger rosa-roedora said...

Discriminação negativa, discriminação positiva. de algum modo a distinguimos, curiosamente uma floresce na flor da outra, ambas de raizes para o ar e a cabeça no vaso.

kiss kiss darling!

11:37 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

cara rosa-roedora

kitsch kitsch calling, ou se preferirmos: mas a indiferenciação é sintoma de indiferença, ou ainda: looooooove… is the answer

a frase mais racista que já ouvi foi da minha avô, já falecida: eu cá não sou nada racista, para mim são todos brancos

outro falecido, vizinho de minha mãe quando miúda, arreliava as pessoas desenterrando-lhes as flores e plantas do jardim e replantando-as com a raiz para cima. dizia ele: é a raiz que precisa de estar à vista e ao sol. não sei se o lobotomizaram.

abraço

5:04 da tarde  
Blogger Marco Oliveira said...

Votos de um Feliz Natal!

10:33 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Obrigado, Marco, e um santo e baha'i'ano Natal para ti :)

3:02 da tarde  
Blogger Terpsichore Diotima (lusitana combatente) said...

Grande post Vitor -

mas agora, com muita pressa, queria só dizer que telefonei àquela senhora de que me mandaste o mail...para me informar melhor, para poder espalhar a mensagem: o marido dela já morreu há muitos meses.
O que não quer dizer que não se possa espalhar o resto, claro.

Bom Natal!

Beijinho!

1:56 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Obrigado, Terpsichore

bjinhos e bom natal

11:37 da manhã  
Blogger Terpsichore Diotima (lusitana combatente) said...

Fiquei a saber em que consiste a dádiva de medula óssea. E porquê a necessidade, as dificuldades, as complicações. É.
No entanto vale ainda muito mais, (o que não exclui socorrer também quando o mal já está feito, claro) quem batalhe contra as substâncias cancerígenas que cada vez mais dominam a nossa Terra, e vida, e que as pessoas dão às criancinhas a beber, etc.
É tudo uma gigantesca hipocrisia.
A maneira de acabar com o cancro é acabar com os cancerígenos.

Beijinho Vítor

6:06 da manhã  

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