segunda-feira, novembro 26, 2007

E la nave va

Temos um navio antigo tão recente, de tão renovada e confusa tripulação. Guiamo-nos pela luz dum longínquo farol, e por uma constelação que luz na nocturna abóbada celeste. Alguns de nós tomam a tarefa de guias. É responsabilidade sua a fixação da rota relativamente ao farol, e a cartografia derivada da constelação.

Dada a nossa peculiar força de domínio e organização, requeridas pela arte de navegar, os guias por vezes tomam-se como senhores do farol, e em casos extremos, da própria constelação. Por muito estranho que pareça, visto parecer evidente a qualquer um que um navio com o farol no convés e a constelação no porão, está impedido de ter uma rota ou sequer antever a sua Ítaca, trata-se dum achaque muito comum. Não só os guias são abrasados por tal delírio, embora sejam aqueles a quem, naturalmente, mais ocorre. Muitas vezes, aqueles que se erguem em aviso, são contaminados pelo mesmo vírus. Toda a tripulação está avisada para estar atenta aos indícios desta terrível doença que a todos coloca em perigo.

Os mais sábios de nós dizem para não nos perturbarmos: Ítaca é donde vimos, e mesmo através da névoa do terrível esquecimento, o nosso coração reconhece os desvios da rota, se nos escutarmos com atenção no recolhimento e no silêncio. Falam sobretudo do brutal barulho que é o esquecimento, e não como poderíamos esquecidos pensar, uma ausência ou apagar. O esquecimento é aquilo que retém as coisas no seu segredo e origem, dizem eles, cobertas pelo troar do tempo e da sua distância. Foi o que no esquecimento fulgura, que nos fez fazer-nos ao mar, dizem, e avisam-nos de sobremaneira contra o cântico das sereias, tão perigoso como o excesso de domínio e organização, tão ensurdecedor, dizem eles.

Sabemos também que o navio é assombrado pelo espírito da rota, e isso nos faz ter confiança, mesmo na mais desviada direcção ou quando a tempestade escurece o céu e o horizonte fazendo desaparecer o farol e a constelação. No entanto, também é o que nos mantém no susto, porque o espírito nunca se manifesta dos mesmos modos, e raramente como estamos à espera. A maioria das vezes, é difícil distingui-lo de outra coisa qualquer. Temos um livro onde está escrito: é pelo reverso das coisas que o espírito arrebata, e nunca pelo seu rosto.

Este relatório foi-me pedido para aqueles que o possam encontrar enquanto se procuram, e vai lançado ao mar no estômago duma baleia bebé, neste dia contado a partir dos antigos relatos que todos esquecemos.

Ass.: o escriba ocasional.

6 Comments:

Blogger david santos said...

VEJAM A VERDADE

HÁ TANTO SEGUIDOR DE DEUS,
MAS AMANTE DO DIABO,
QUE NADA FAZ PELO SEU
CORPO INERTE, ALI PROSTRADO.

David Santos

3:45 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

flautinhadiNEY, mai-lo qué preciso

2:35 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Precisamente e por exemplo, David.

Um abraço

PS: Ver a verdade?... A verdade dá a ver e a rever.

12:12 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Olá, blues :)

O que é preciso: o impreciso desnecessário.

Rigor do excesso.

As portas rangem, os horizontes afundam – todo o a mais de ti se ergue e te revela.

Diz o pequeno sopro na pequena flauta.

Por vezes dói, quase sempre, na rigorosa vida a alegria dói quase sempre.

Abreijo

12:14 da tarde  
Blogger joaquim said...

Havia, ou ainda há, uma banda de música portuguesa, "Os Delfins", que tinham uma música que dizia:
«Ao passar o navio, fica o mar sempre igual...»
E esse é muitas vezes o problema em relação ao navio de que tão bem falas:
É que muitas vezes ele passa e o mar fica sempre igual, e o que era preciso era que o mar muda-se, se agitasse, porque agitadas as águas, ressurge a vida...

Obrigado pela reflexão.

Abraço amigo em Cristo

1:34 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Eppure si muove, Joaquim ;)

Abraço em Cristo

5:10 da tarde  

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