segunda-feira, outubro 26, 2009

O vento lá fora

Apenas morremos, diz o monge, porque amamos a morte, desejamo-la estonteadamente. É um segredo, claro, ocultamo-lo em voracidades e vitórias que se querem vivas e mordazes, mas é o próprio sabor do nada que as invade e as é, na medida em que se escoam, como tudo, ressoando nos poços sem fundo da memória. Sabemos da vertigem, da imensa tontura perante o vazio, da atracção. To sleep, to die, no more. Morremos no nosso desejo de repouso, de finalmente escoarmos e ir, desaparecermos, entrar no fim do outono sem fim, a última folha caída como a pálpebra na morte. O amor por tudo o que já foi e passou atira-nos de encontro ao desaparecimento, que desejamos então como um sonho imperscrutável. E assim morremos, em anseio próprio e decisão, pura paixão vital. Somos filhos do nada, e a seus modos são os nossos frutos, as nossas obras e saberes. Desejamos ir ter com os entes queridos que já foram, com a criança triste e alegre que nós próprios fomos. Desejamos reter sem deter este momento que mesmo agora passou. Do próprio futuro somos já saudade, disse o poeta. E só o criador, aquele que sustém presentes e concretos todos os tempos da vida, aquele que há no ser e igualmente se mantém havendo no nada, pode aí dar uma palavra. (Dá um gole no chá.) Pois, alguns de nós entregam-se à escuta directa dessa palavra de Deus que se dá para lá do tempo e da vida, para lá do ser e do nada, para lá de tudo. O puro e único deus que tudo cria e mantém, que cria o tempo e o espaço e todas as coisas vivas e mortas. Aqui, tentamos esvaziar-nos de todas as coisas internas e externas que sejam nossas, e poisar na eternidade onde Deus tudo retém sem deter, no em si do deus vivo. Tento fazê-lo neste preciso momento em que falo consigo, é essa a ideia. (Ri-se.) Poisar no tempo até ao fundo boiando na eternidade, frisa sorrindo, em qualquer tempo, no de lavar a louça até ao da mais fogosa paixão. Descascar uma cebola até Deus, disse o mesmo poeta, nem mais. Dê-me aí um cigarro. (Estendo-lhe o maço e o isqueiro.) Obrigado. Bem, e que tal irmos jantar ao ar livre, junto ao rio? Está uma noite magnífica.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olá Victor. Tenho acompanhado o seu blog faz muito tempo, mas nunca tinha tido coragem de escrever algo sobre o que você escreve. E se você escreve bem! Há no entanto algo que me intriga bastante. O Victor anula a possibilidade da política nos seus textos. A sua postura, tal como em todo o fanático religioso, anula a possibilidade do espaço público, pois toda a decisão é irrevogavelmente individual e privada. Agostinho já o tinha afirmado. Creio que desse modo se atira borda fora a água, o bêbê e a banheira. Não posso concordar consigo. Boas escritas.

12:53 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Olá,anónimo.

1.Confundir o espaço íntimo com o espaço público é a lógica da desvitalização e despersonalização; no entanto, nada deste blog é íntimo nem privado, e se o fosse, caíria sob o eixo do equívoco anterior; o íntimo estará aqui como os passos estão nas pegadas; mas muitas destas são apagadas pelo tempo, pela distância e pela vontade.
2.O debate inócuo, nos modos em que nos instigam as forças partidárias do governo, do parlamento, da comunicação social, etc, configurando-nos as temáticas, conteúdos e modos de pensar a política, constitui uma tecnologia de desactivação de toda a crítica concreta e de toda a consciência histórica, pessoal e colectiva; por mais que os bobos da corte cantem cantigas de escárnio e maldizer, adormecem sempre com o sangue da sua própria frustração e ressentimento.
3.Uma construção autêntica de si, só poderia estabelecer-se e mostrar o seu rosto socialmente institucional num mundo revolucionado; doutro modo, isto é, por exemplo que nos tolhe, sob a forma da sociedade mercantilista, ela prossegue, mantém-se e resiste sob a forma negativa de recalcamento ou revolta, ou executando-se em ilhas e caves da sociabilidade geral, com maior ou menos lucidez, com mais ou menos força e vigor; ilhas e caves que, naturalmente e por definição, nunca serão publicitadas no ecrã de qualquer sistema político ou publicista.
4.No eventual caso de impossibilidade congénita da sociabilidade manter a revolução como seu esteio central, esta deverá sempre ser-vida, deverá sempre ser-vir, e manter-se-á sob diversas formas de negatividade positiva em certos momentos históricos, certas obras individuais ou colectivas, espalhando e espelhando os seus clarões e actos de concreção viva, para que não seja nunca dada a última palavra e estado de coisas ao soçobro do humano.
5.Todo o acto vital e próprio é uma obra de resistência política.

Saudações, e boas políticas

10:16 da tarde  

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