Recordação
A primeira vez que rezei, tinha cerca de nove ou dez anos. Foi evidentemente bastante estapafúrdio, de algum modo vergonhoso segundo a etiqueta comportamental do mundo e da razão, pelo menos relativamente ao parco conhecimento que tenho dos seus modos de acontecerem e “funcionarem”. A mim, Ele não precisou de dizer para fechar a porta.
Aconteceu que um colega de escola, que tinha sempre notas acima de 14 me disse quando o inquiri acerca do seu “método”: Na véspera dos testes, rezo e peço a Deus que me dê sempre boa nota.
Não me falou de estudar, ou reflectir, ou assim me lembro eu: pois então rezo, peço ao Senhor do universo, é evidente, para quê perder tempo com circumnavegações, vou a corta-mato, directo ao assunto, então pois… rezo. E foi o que, sem fazer a mínima mas com a audácia e disponibilidade da infância, me dispus a fazer pela minha parte, e pelo mesmo assunto, não fosse alguma improvisação afectar a “verificação” da Sua existência - digo eu agora, algo indiciado pelo toque absurdo de, gostando eu na época de estudar, conversar e reflectir, obter “naturalmente” as notas a pedir ao Improvável e Totalmente Desconhecido. Nem sequer usei o mediador Jesus, penso eu, não tivera catequese “oficial”, e além disso não se tratava de ir a corta-mato directo ao assunto?... Lembro-me de pôr-me de joelhos junto à cama, fechar os olhos e “concentrar-me”, falando e escutando no profundo silêncio da Sua ausência.
“Imaginemos” agora, visto que se ressente o passado na configuração do presente, que “funcionava” – enquanto pedido, obtenção, requisição. Pois nada disso ressinto eu agora como fulcral na recordação – a não ser como instigação à suspeita da Sua improvável mas interpelante existência. Até porque acabamos por perceber que o que se obtém e não obtém por aqui tem o valor da efemeridade, varrido e disperso como quase nada pelo nosso amigo tempo. E recordo-me como confusamente desejando não essencialmente os pedidos específicos, mas a esperança e anseio indefinido de algo que “vencesse” a efemeridade, a existência à mercê dos dias cegos. Qualquer coisa que não tem nome por aqui.
Rezar serenava a violência melancólica da minha infância, depondo-me noutra violência em que a melancolia se transmuda em busca e apelo.
Não se trata aqui de relevar o que de supersticioso e egótico e ilusório e preguiçoso e cobarde e etc e etc pode haver nas orações como em todas as nossas atitudes e actividades, mas sim de entrever o Algo que pode surgir nessa actividade da oração, na atitude religiosa, e que vem pôr em interrogação essa actividade e essa atitude assim como todas as outras. É nos nossos gaguejos humanos demasiado humanos que acabamos por tropeçar para “fora” de nós, onde uma mão nos agarra ou o nada nos dissolve. A que corresponde a actividade da oração e a atitude religiosa – as respostas são tantas quanto as concepções de realidade.
Lembro-me que acabei por deixar de rezar, aquilo assustou-me, era por assim dizer demais para mim – acabei por deixar de rezar, durante cinco ou seis anos.
Isto tem sido uma difícil catequese.
Até porque com Ele nada funciona sempre da “mesma” maneira, não estamos de todo no reino da necessidade e do automatismo.
E o barco prossegue, puxado pela graça e pela confusão.
Aconteceu que um colega de escola, que tinha sempre notas acima de 14 me disse quando o inquiri acerca do seu “método”: Na véspera dos testes, rezo e peço a Deus que me dê sempre boa nota.
Não me falou de estudar, ou reflectir, ou assim me lembro eu: pois então rezo, peço ao Senhor do universo, é evidente, para quê perder tempo com circumnavegações, vou a corta-mato, directo ao assunto, então pois… rezo. E foi o que, sem fazer a mínima mas com a audácia e disponibilidade da infância, me dispus a fazer pela minha parte, e pelo mesmo assunto, não fosse alguma improvisação afectar a “verificação” da Sua existência - digo eu agora, algo indiciado pelo toque absurdo de, gostando eu na época de estudar, conversar e reflectir, obter “naturalmente” as notas a pedir ao Improvável e Totalmente Desconhecido. Nem sequer usei o mediador Jesus, penso eu, não tivera catequese “oficial”, e além disso não se tratava de ir a corta-mato directo ao assunto?... Lembro-me de pôr-me de joelhos junto à cama, fechar os olhos e “concentrar-me”, falando e escutando no profundo silêncio da Sua ausência.
“Imaginemos” agora, visto que se ressente o passado na configuração do presente, que “funcionava” – enquanto pedido, obtenção, requisição. Pois nada disso ressinto eu agora como fulcral na recordação – a não ser como instigação à suspeita da Sua improvável mas interpelante existência. Até porque acabamos por perceber que o que se obtém e não obtém por aqui tem o valor da efemeridade, varrido e disperso como quase nada pelo nosso amigo tempo. E recordo-me como confusamente desejando não essencialmente os pedidos específicos, mas a esperança e anseio indefinido de algo que “vencesse” a efemeridade, a existência à mercê dos dias cegos. Qualquer coisa que não tem nome por aqui.
Rezar serenava a violência melancólica da minha infância, depondo-me noutra violência em que a melancolia se transmuda em busca e apelo.
Não se trata aqui de relevar o que de supersticioso e egótico e ilusório e preguiçoso e cobarde e etc e etc pode haver nas orações como em todas as nossas atitudes e actividades, mas sim de entrever o Algo que pode surgir nessa actividade da oração, na atitude religiosa, e que vem pôr em interrogação essa actividade e essa atitude assim como todas as outras. É nos nossos gaguejos humanos demasiado humanos que acabamos por tropeçar para “fora” de nós, onde uma mão nos agarra ou o nada nos dissolve. A que corresponde a actividade da oração e a atitude religiosa – as respostas são tantas quanto as concepções de realidade.
Lembro-me que acabei por deixar de rezar, aquilo assustou-me, era por assim dizer demais para mim – acabei por deixar de rezar, durante cinco ou seis anos.
Isto tem sido uma difícil catequese.
Até porque com Ele nada funciona sempre da “mesma” maneira, não estamos de todo no reino da necessidade e do automatismo.
E o barco prossegue, puxado pela graça e pela confusão.
8 Comments:
Obrigada, por esta partilha.
A oração é lixada, é. Por isso tantas vezes a abandonamos ou a rotinamos papagueando palavras ao metro.
Abraços
Antes de mais, aviso que deixei um comentário no teu ultimo post, depois, digo-te... quando somos pequenos não sabemos, não temos muito bem conscinecia do que fazemos... Por acaso nunca me aconteceu isso, porque só rezava quando estava com a minha avó e porque ela rezava comigo! Coitadinha, o que ela aturava! bem, mas tu de certeza que não sabias que rezar não fazia nada se tu não estudasses! É uma história engraçada... :p ;) :)
Bjs, Thinky_girl
Muitos posts para salvar e ler com calma. Talvez o jejum forçado tenha permitido que um apetite desmedido possa encontrar alimentos nutritivos.
Graça e paz.
Gostei do post!
"Puxado pela graça e confusão.."
Confuão talvez não, porque Deus não é Deus de confusão, mas de abrir olhos, curar "cegos", dar visão... e é nesse Caminho que tu estás.
Quem O busca encontra!
Cara MC.
E tão difícil senão impossível dela falar. É tão... íntimo.
Cara Thinky_girl.
Muito importante essa do esclarecimento e estudo para o sentido da oração. E importante a partilha de sentimentos e pensamentos, como a tua avó
contigo. Isto do cristianismo é também uma caminhada em comunidade, e amar é também aturar-nos uns aos outros - embora suspeite que para a tua avó seria uma felicidade "aturar-te"...
Caro Samuel.
Sim, a fome é um dos guias... E que o alimento que encontres seja desmedido como a tua fome...
Cara Paula.
E eu, gosto que "cá" venhas.
Cara Vilma.
Sim, sim, correctíssimo.
Mas enquanto é Caminho alguma confusão se instaura na minha prática cristã. Não no sentido de ser um “Deus de confusão” mas da interpelação constante que faz à minha consciência, assim como de inúmeras tensões entre situações e disposições concretas em que essa interpelação é dada, desde o amor ao próximo (do vizinho “chato” ao assassino da esquina ou do poder) até à avaliação e orientação da minha relação com a “comunidade” cristã, e às minhas resistências conscientes e inconscientes à radicalidade cristã, etc etc etc. Até quando janto no conforto de minha casa sem convidar o sem-abrigo que vi quando vinha a caminho, Ele me interpela…
Penso que mesmo “fora” do cristianismo, a relação entre a consciência e a vida tem zonas diversas de conflito e confusão.
Foi isto que eu quis indicar.
Abraços.
Nenhuma prece é feita em vão, se a intenção for pura. É sempre um desejo de vastidão ao qual o Criador não pode deixar de se abrir. Deus não resiste às palavras mal articuladas de um filho:)
Cara Catarina.
Possa a minha bazófia e verborreia “acertar” em cheio e abrir-se à vastidão como as três linhas do seu comentário!
Um abraço.
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