Shema
Se, na relação com Cristo, tomarmos o humano enquanto género, o que acontece entre este e o deus advindo no humano é: espatifamo-lo na cruz, dividimos as suas roupas, e passamos a comê-lo aos pedaços até ao fim dos tempos. O primeiro gesto é de recusa da diferença radical do divino, e o segundo o de querermos essa diferença em nós. Nada de novo, claro, sempre quisemos os direitos da divindade, mas nunca os seus deveres.
Ecoa aqui no cristianismo a voz sibilina que sussurra: comei, e sereis como deuses. Verdadeiramente são nossos pai e mãe, Adão e Eva, de que viemos e onde estamos e somos, de que nascemos e não podemos escapar: os que recusam o divino na mesma medida em que o procuram.
Analogamente, o canibalismo tem geralmente duas vertentes, uma exofágica e outra endofágica: come-se o inimigo, numa intensificação da aniquilação perpetrada ao matarmo-lo; ou come-se alguém do nosso grupo, familiar ou chegado, afim de intensificar a sua integração na nossa vida e identidade.
A nossa teofagia cristã, ou se preferirmos, o sentido narrativo da morte de Jesus conectada com a última ceia – cruza significativamente a vertente endofágica com a exofágica; pois quanto maior a diferença no amor, maior o grau de aceitação na recusa, e inversamente; maior o conflito e desajuste imanente da relação, assim como maior a intensidade da comunhão.
E corresponde também à relação que temos com a vida envolvente e o seu sentido: a vida que mata, a vida injusta em que crianças com cinco anos morrem de cancro e outros nascem deformados e estropiados; a vida muda, indiferente, exuberante e esplendorosa; também o grito e soçobro de Job são pais da teofagia cristã: algo que nos atravessa de querer e viver mais e muito, e a crueza do embate e tropeço nas finitudes que caoticamente se acumulam até nos destruir por completo. A nossa conversão trata também de, na dinâmica destes dois polos, produzir uma harmonia e executar a sua dança, um sentido de luta e aceitação que mutuamente se esclarecem; é, na travessia de desastre e morte que constitui a vida, confiar naquilo que a esta preside: o Deus vivo e misterioso que tudo atravessa e sustém no seu sopro criador; não negar nem fugir do vale da morte e das sombras, mas atravessá-lo com o coração em Deus, em funda escuridão e encadeantes luzes, os olhos abertos no lamento e na alegria.
É também nesse sentido que o nosso deus é um deus da vida: não porque a morte e a injustiça sejam algo a que seja alheio, ele que criou a terra e os céus onde faz chuva e sol sobre justos e iníquos, mas precisamente porque tudo isso da vida – lhe diz eminentemente respeito; pois os seus anjos não apenas alentam e guardam, mas terrivelmente exterminam.
Possamos pois erguer a sua espada pela nossa carne adentro, no sangue com que a morte nos banha, e no anseio com que a vida nos estremece; para que a ressurreição dance sobre o abismo sem o iludir.
Ecoa aqui no cristianismo a voz sibilina que sussurra: comei, e sereis como deuses. Verdadeiramente são nossos pai e mãe, Adão e Eva, de que viemos e onde estamos e somos, de que nascemos e não podemos escapar: os que recusam o divino na mesma medida em que o procuram.
Analogamente, o canibalismo tem geralmente duas vertentes, uma exofágica e outra endofágica: come-se o inimigo, numa intensificação da aniquilação perpetrada ao matarmo-lo; ou come-se alguém do nosso grupo, familiar ou chegado, afim de intensificar a sua integração na nossa vida e identidade.
A nossa teofagia cristã, ou se preferirmos, o sentido narrativo da morte de Jesus conectada com a última ceia – cruza significativamente a vertente endofágica com a exofágica; pois quanto maior a diferença no amor, maior o grau de aceitação na recusa, e inversamente; maior o conflito e desajuste imanente da relação, assim como maior a intensidade da comunhão.
E corresponde também à relação que temos com a vida envolvente e o seu sentido: a vida que mata, a vida injusta em que crianças com cinco anos morrem de cancro e outros nascem deformados e estropiados; a vida muda, indiferente, exuberante e esplendorosa; também o grito e soçobro de Job são pais da teofagia cristã: algo que nos atravessa de querer e viver mais e muito, e a crueza do embate e tropeço nas finitudes que caoticamente se acumulam até nos destruir por completo. A nossa conversão trata também de, na dinâmica destes dois polos, produzir uma harmonia e executar a sua dança, um sentido de luta e aceitação que mutuamente se esclarecem; é, na travessia de desastre e morte que constitui a vida, confiar naquilo que a esta preside: o Deus vivo e misterioso que tudo atravessa e sustém no seu sopro criador; não negar nem fugir do vale da morte e das sombras, mas atravessá-lo com o coração em Deus, em funda escuridão e encadeantes luzes, os olhos abertos no lamento e na alegria.
É também nesse sentido que o nosso deus é um deus da vida: não porque a morte e a injustiça sejam algo a que seja alheio, ele que criou a terra e os céus onde faz chuva e sol sobre justos e iníquos, mas precisamente porque tudo isso da vida – lhe diz eminentemente respeito; pois os seus anjos não apenas alentam e guardam, mas terrivelmente exterminam.
Possamos pois erguer a sua espada pela nossa carne adentro, no sangue com que a morte nos banha, e no anseio com que a vida nos estremece; para que a ressurreição dance sobre o abismo sem o iludir.
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