Habitação 3
para a Ana
aos amigos
Viver com os outros é uma escola do caraças. Falo de viver com, em dinâmicas de amor, filiações, amizade, o que fôr. Habitamos o mesmo lugar. É-se forçado, de uma maneira ou de outra, num momento ou noutro, a confrontar-se com o olhar do outro. Como ele se mostra, e nos mostra. Diz-nos muitas vezes coisas que não gostamos, ou em que não nos reconhecemos; faz-nos também considerar como nos vemos a nós próprios, em que o que não gostamos pode ser tanto mesmo assim, pode ser tanto o que afinal somos e agimos; e por outro lado, conhecer-se é também descobrir-se e fazer-se no embate à vida, nas nossas imprevisíveis reacções. Coabitar é navegar com, reunir fraquezas e desgostos, forças e esperanças. Sofremos em proporção também, claro, assim como a alegria: não há alegria mais funda do que a alegria do outro que nos invade, que se nos dá. Descobrimos aliás que é a unica alegria; e que uma alegria solitária, não partilhável nem mútua, é um sarcasmo disfarçado, uma espécie de mágoa existencial. (Notemos de passagem que sem o outro, Robinson está quinado.) Há também essa questão da morte, claro, e diz-se nos casamentos: “até que a morte nos separe”. Trata-se dum estertor de bom senso, toda a gente sabe que a morte é mais forte que tudo; mas pulsa no coração dos humanos uma mais tresvariada e transbordante notícia, e nesse sentido se invoca Deus; invocação que se anuncia no olhar mútuo com o outro, e com os outros; digamos que os amigos e amados que se convida não estão lá como assistência, são também riso e lágrimas do mesmo mistério, sangue e carne da mesma vida, dos dias que passam como um trilho no abismo e nós. Alguns vão trair, outros nós próprios traíremos; e outros as mãos conjuntas dançaremos; e aqui mesmo partilhamos esta coisa de estar vivos e acordados e a imensidão à nossa volta e por dentro. Na verdade, não se percebe bem o que nos liga e entranha, mas qualquer amor ou amizade que não se sonhe mais forte que a morte, não passa de vã pacotilha, de uma mera mercadoria, nada tem que ver com nada de autenticamente humano. Amar é dizer: quando estiveres a morrer, estarei lá contigo. Não te deixarei morrer sozinho, dar-te-ei a mão, o olhar, o corpo inteiro; é dizer: Não te deixarei morrer sem mais, vamos juntos até ao fim; dizer tão frágil, dizer que sabe que o rio do tempo se escoa, e que qualquer nada nos poderá separar, ferir para sempre; e que o fim é também e sempre um acto solitário, que se vive e morre sempre sozinho – ou com Deus, para dizê-lo de outro modo.
Assim é na casa, onde cuidamos e guardamos as nossas paixões, e as perdemos, sem jamais abandoná-las.
7 Comments:
Que texto maravilhoso!
maravilhar-se é preciso :)
Este comentário foi removido pelo autor.
Uma amiga pediu-me para a ajudar a escrever "uma mensagem " na lápide da mãe.
Escusado será dizer que a mãe da minha amiga é também um pouco minha mãe e que andava por aqui aos tropeções na angústia e na escrita até ler este texto.
uma imagem de ti, e da vida, muito viva que aqui nos dás.
deu-me bastante gozo ler.
beijo, mano
LER-TE É PRECISO, aLEXANDRE!
Fecha-se o livro, solta-se louvor:
Cheio é o Orbe das Tuas maravilhas,
Santo, Imenso e Bom Senhor.
Criaturas aladas, levai meu ai.
Névoas, neblinas, regatos, ribeiras,
anjos, e meninos, bendizei.
Mártires d’amor, cantai.
Poetas, aedos, bailarins expressem
minuciosas belezas inumeráveis.
Seja desmesuradamente prolongado
o saltério aOs Celestes Prodígios.
Arquitectos, artistas, dramaturgos, cinéfilos,
informáticos, jornalistas Te proclamem.
Urzes, giestas, estevas, tílias, margaridas, lilases,
fremi a única alegria.
Aragens, brisas, fogueiras anunciem O Pleno.
Relâmpagos, raios, tempestades, gritai.
Répteis, peixes, batráquios, fugitivos animais, louvai.
Luz matinal, aclama O Que Em Ti.
Pedras, terras, orlas, explodi um canto novo.
Flores, verduras e florestas, mares e nuvens, esplendei.
Luzeiros, astros, sóis, estrelas, clareiras e galáxias, ecoai.
Abscôndito, em Teu Nome houvemos força.
Onde haja torpor nos fira incólume Teu sorriso.
A que resulte, para o peregrino, renascido amor.
A que não esqueça Lázaro:
Tenha abertas as portas da choupana.
Filho de David, reencontra as reses desgarradas.
Traz a teu redil quantos Te magoam.
Teu entranhado Enlevo seja comum bênção.
Como algodão hidrófilo, Teu jugo;
pacientíssima, até aos fins,
Tua expectativa quanto a cada um.
Entreguemos na raiz da Cruz tribulações:
Provê, a todos, o melhor bem:
A rodos derrames consolação.
P’los agradabilíssimos Átrios,
Te elevemos diferente Louvor.
Bebamos Vaso Pleno.
AjudasTe-nos quando o Egipto sofremos;
saciasTe-nos com A Terra Prometida.
EndireitasTe-nos os molestos ossos;
guardasTe-nos
nO Coração
mais Coração
dO Coração.
-
Amiga, que mais pedir?
Olhes teus filhos desviados.
Amem eles verdadeiramente a paz,
e o céu a trará na cor inexplicável.
Também Através da Poesia se Constrói a Paz
um desmesurado ámen, caro Ângelo
abraço
Enviar um comentário
<< Home